Ramalhete de "causos"

O buraco do negro

José Ronaldo dos Santos
A cada passagem de ano me recordo do que eu contarei a seguir. É triste, mas creio que deve ser rememorado, pois pode servir como oportunidade de revisão de vida, sobretudo quando estamos aguardando outro ano com muitas chances para importantes acertos em busca da felicidade.

“Eu conheci muita gente que era escrava”. Com essa frase, a minha avó Martinha, a minha contadora de causos favorita, da praia do Pulso, me contou da escravidão na região sul do município. Quando eu perguntei ironicamente se eles –os escravos - sofriam muito, a vovó ergueu a voz:

“É claro que eles sofriam! Tinham que trabalhar em qualquer condição: quer o céu virasse água, quer o sol esturricasse. De vez em quando apanhavam por nada ou pouca coisa. Dormiam bem dizer no chão, em esteiras puídas, cheia de pulgas, carrapatos e outros bichos. Sofriam demais! Os mais velhos contavam de situações de partos das negras em aceiros de roçados, na Caçandoca, onde as crianças já viam a claridade do mundo recebendo esfolamentos nos delicados corpinhos, entre tralhas dos batatais e ramas dos mandiocais. Não é isso sofrimento? E diziam também coisas medonhas dos alimentos servidos a essas criaturas. Era um cozido de qualquer jeito, levado em grandes caldeirões para a roça onde os coitados suavam. Aquilo era servido em folhas de caetê ou de taioba; usavam as mãos, comiam lambendo aquele engorolado como bichos. No sertão da Caçandoca, quase perto do lugar onde morava a família do Silvário Conceição, tem uma pedra que até hoje é conhecida como Pedra da Comida. Lá, segundo a minha avó, sobre folhas espalhadas, como se forrassem a superfície, a comida era derramada para que os escravos aliviassem a fome. Os negros que estão por aí hoje são uns vencedores; conseguiram passar por provas que pouca gente consegue. Uns morriam porque os corpos não aguentavam tantas dores e doenças; falavam de uma epidemia de papeira que castigou demais esses coitados”. Perguntei o que é isso de papeira. Vovó explicou que hoje essa doença tem o nome de caxumba. Depois ela continuou: “Outros, devido à saudade da terra natal, dos parentes e amigos que lá deixaram, além da separação da própria família, preferiam o banzo; morriam de tristeza. Achavam melhor morrer do que viver uma vida que não era vida. Houve ainda aqueles que corajosamente acabavam rapidamente com a própria vida. Imagine o tamanho do sofrimento capaz de chegar a esse ponto! Ali, entre o Pulso e a Caçandoca, na costeira, está o Buraco do Negro, onde muitos escravos se jogaram para abreviação dos sofrimentos. Caíam com a cabeça na pedra e morriam na hora. E lá ficavam porque o dono não se importava em enterrar quem lhe impediu de ter mais lucros. Tinha um pescador, por nome de Manoel dos Santos, que se compadecia; com muita dificuldade, entre as pedras, recolhia defuntos na escuridão, carregava até o cemitério da mata da Raposa e lá sepultava o infeliz. O próprio Manoel, num dia primeiro de ano, depois de perder a companheira para o capataz da Fazenda dos Morcegos, também buscou o seu fim naquele buraco. Depois disso, a cada principiar de ano, as pessoas do lugar saíam em procissão em honra ao bondoso homem, chamado depois disso de São Manoel do Buraco. A costeira ficava cheia de flores e iluminada por fifós na virada de cada ano. Hoje isso não acontece mais”.

Twitter

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Mosca-dragão

Pegoava?

Jundu