Coluna da Dra. Luiza Eluf

Triste Justiça

Luiza Nagib Eluf
Certa vez, uma senhora de nome Olga precisou reaver um imóvel comercial que se encontrava alugado e, para isso, contratou um advogado, já que o inquilino, um órgão público federal, não queria desocupar o prédio. Casos como o de dona Olga são relativamente simples e de rápida solução – tratava-se da chamada “denúncia vazia”, uma ação de despejo imotivada, que não exige muita elucubração jurídica nem a produção de provas complexas.

O advogado de dona Olga, Dr. Kalil Rocha Abdalla, com 35 anos de profissão, elaborou a petição inicial, juntou os documentos necessários, apresentou tudo à Justiça Federal e permaneceu no aguardo do despacho do juiz. Era 10 de abril de 1989.

Passado um ano sem manifestação do magistrado, a despeito dos esforços do causídico para que algum andamento fosse dado à ação de despejo que estava propondo, Dr. Kalil ingressou com uma petição espirituosa mas, ao mesmo tempo, reveladora de seu inconformismo com a inércia da Justiça. Dizia ele que, com o maior respeito que devotava ao digno magistrado, vinha cumprimentá-lo pelo aniversário de um ano de conclusão (que em linguagem jurídica significa “no aguardo de decisão do juiz”) para um complicadíssimo despacho saneador ou prolação de uma dificílima sentença de despejo por denúncia vazia. E finalizava: Só resta cantarmos parabéns a você nesta data tão querida, muitos anos de conclusão para gáudio da Justiça. Para completar a ironia, desenhou um bolo de aniversário grande e enfeitado, logo abaixo de sua assinatura, com uma velinha acesa.

Seu esforço resultou no despacho: “especifiquem provas”. Um ano para que duas palavras fossem proferidas!

Pois bem. Cumprida a determinação do Juízo, isto é, especificadas as provas, novamente o silêncio sepulcral caiu sobre a infeliz ação de despejo. A despeito da insistência do advogado, nenhuma providência foi determinada.

Cinco anos se passaram quando, finalmente, o juiz julgou a ação improcedente, desacolhendo o pedido de despejo, sem que nenhuma das provas “especificadas” pelas partes tivesse sido produzida.

Totalmente inconformado, Dr. Kalil entrou com um recurso de apelação no Tribunal competente, pedindo a reforma da decisão proferida, que não acolhera seu pedido de despejo e deixara dona Olga, uma senhora idosa, sem o imóvel de que tanto precisava.

Passaram-se mais cinco anos, sem manifestação do Tribunal. Desesperado e não tendo como explicar à cliente a razão de tanta demora, o advogado entrou com outra petição, desta vez com um enorme bolo de aniversário de 10 anos. Era dia 3 de dezembro do ano 2000, último mês do século, cinco dias antes da comemoração do dia da Justiça. Dizia ele, em seu texto, que continuava, desde 1995, aguardando o julgamento do recurso de apelação e, na oportunidade, reiterava os cumprimentos do primeiro aniversário mas, já agora, com 10 velas, torcendo para que não houvesse necessidade de nova comemoração no próximo século.

Em fevereiro de 2001, o Tribunal julgou a ação de despejo movida por dona Olga e, irônica decisão, anulou a sentença proferida em primeira instância porque as provas necessárias não haviam sido produzidas!

Ao tomar ciência do Acórdão (decisão da segunda instância), Dr. Kalil entrou com outra petição, anunciando que vinha noticiar um fato deveras desagradável – o falecimento de sua cliente dona Olga, autora da ação. Desenhado, em todos os detalhes, havia um caixão preto com velas e coroas de flores ocupando metade da primeira página. “MÓ-RREU”, escreveu Dr. Kalil, em letras grandes, parodiando conhecido personagem de programa humorístico, “certamente cansada e desiludida por esperar pelo desenlace de uma simples ação de despejo por denúncia vazia”.

Em sua última petição, o advogado admitiu que foi ousado em reclamar da demora da Justiça, mas nunca fora desrespeitoso, não merecia o que chamou de “vingança dos Magistrados que manusearam, ou melhor, nunca manusearam este processo”. E retirou-se dos autos, já que não era advogado do espólio. Sua última frase foi: “esta ação constitui um verdadeiro desrespeito a 170 milhões de brasileiros que imaginam, um dia, ter que se socorrer do poder Judiciário Federal”.

E assim, dona Olga não alcançou a prestação judicial que pleiteou. Contratou advogado, passou doze anos na espera e morreu frustrada, sem ver a decisão, favorável ou não. Quantas pessoas, como ela, ainda terão de sofrer pela Justiça que não temos antes que o poder público promova a reforma necessária para diminuir a morosidade?

É certo que, alguns anos após esse fato, foi criado o Conselho Nacional de Justiça, que se propõe a fazer o controle externo do Poder Judiciário. O órgão em muito vem colaborando para que a cidadania brasileira não seja mais prejudicada como aconteceu com Dona Olga. Mesmo assim, a questão primordial ainda não foi solucionada, pois depende de uma reforma ampla dos códigos de processo civil e penal. O Congresso está se mobilizando para votar esses projetos de reforma, a fim de que qualquer pessoa que precise de uma decisão judicial não tenha que morrer sem tê-la.

Luiza Nagib Eluf é Procuradora do Ministério Público do estado de São Paulo. Foi Secretária Nacional dos Direitos da Cidadania no governo FHC. É autora de vários livros, dentre os quais “A paixão no banco dos réus” e “Matar ou morrer – o caso Euclides da Cunha”, ambos da editora Saraiva.

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