Ramalhete de "Causos"

O incréu

José Ronaldo dos Santos
Em meados de 1960, na praia do Sapê, tudo era muito diferente de hoje. A dona Maria Balio morava em frente ao mar. Ao lado de sua casa ficava o cruzeiro, onde está até hoje. Ou seja, segue a tradição portuguesa de dar a conhecer, a quem chegasse pelo mar, que os cristãos já tinham tomado posse do lugar. Depois da estrada ficava o Largo e o comércio ao redor. Calixto, Ângelo e João Pimenta e outros eram os comerciantes. Também por ali estava o posto telegráfico, onde Deolindo trabalhava. Mais adiante, no Porto do Eixo, a pescaria era farta. A isca era catada ali mesmo: na areia grossa se cavava pregoava. No peral dava de tudo.

A capela, desde a passagem da estrada, na década de 1950, foi instalada no começo do caminho para o Sertão da Quina. Seu vizinho era armazém do João Pimenta que, apesar de ser prestativo, dar prendas para os leilões e até acolher o padre, não era de ir à igreja. Eu era pequeno, mas ficava intrigado com tal particularidade. Resolvi perguntar para o meu pai a respeito disso; queria uma confirmação das minhas observações.

- Pai, por que o João Pimenta não vai nunca rezar na capela? Ele não é católico? O senhor o conhece desde pequeno?

- Você reparou nisso, meu filho? É verdade: ele não é de ir em igreja. Pelo que já ouvi dele, desconfio que não segue religião nenhuma. Faz muito tempo que ele está morando aqui, mas ele é gente da praia da Mococa; descende dos antigos fazendeiros do Sertão do Poço Verde.

- Como se chama quem não tem religião, pai?

- É incréu, meu filho.

Se eu perguntei mais coisa não me lembro. Porém, noutra ocasião, quando fui buscar uma pedra de sabão para a mamãe, fiquei escutando, escondidinho, uma conversa entre o padre Pio e o João Pimenta. Tive a impressão que os dois estavam empolgados no bate-boca que nem se importavam se alguém ouvisse ou não. Não peguei o início da falação, mas pude entender melhor, no fim da conversa, o que queria dizer incréu.

Resumidamente o João Pimenta disse que respeitava muito quem seguia a igreja; que gostava dos padres e que até ajudava no que podia, mas não acreditava em nenhuma divindade a não ser no próprio homem. As religiões foram criadas por homens espertos; se constituíram sacerdotes e viviam disso. A pregação era o trabalho deles. Porém, nunca podiam dizer nada que contrariasse seus ouvintes, principalmente aqueles que têm mais dinheiro para ofertas. Essa história que Deus proverá é papo que nem os padres acreditam. Prova disso é que estão sempre esmolando. Nada cai do céu a não ser tempestade com coriscos. Por fim, dando uma sonora risada, quase que gritou: -“Deus me livre de eu acreditar em Deus!”.

Sugestão de leitura: Bom dia, Ubatuba, de Idalina Graça.

Boa leitura!

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