Ramalhete de "Causos"


Formiga vai... Formiga vem

José Ronaldo dos Santos
Eu, por uma série de fatores, entendo um pouquinho das coisas da cultura caiçara. Consigo falar da História, dos costumes e até das armadilhas (esparrela, mundéu, covo etc.). Em tudo isso -que é tipicidade cultural- há uma marca evidente: a criatividade.

A criatividade varia de povo para povo, de pessoa para pessoa. Porém, adoro aqueles que extrapolam os limites do compreensível. É o caso da engenhosidade do meu parente Mané Bento. Deixarei que ele se justifique por si mesmo. Vamos prestar atenção na sua fala. Ela se deu na minha escola primária, a casa da tia Martinha, no final da década de 1960. Na lousa, a data: dia 21 de setembro. Foi quando a professora reuniu todas as famílias do local para falar sobre o Dia da Árvore. Cerimônia simples, mas muito significativa. Alguns moradores mais antigos falaram depois da mestra. O gesto concreto foi o plantio de dez mudas de jacatirão, uma madeira muito usada na construção das casas de pau-a-pique. Assim foi o recado do Mané Bento:

"Não se fala de mato sem dexá de falá de formiga. Houve tempo em que formiga tinha demais: era saúva no mandiocá; quém-quém sapecava o roserá e as laranjera; em quarquer moita de tiririca ou de pé-de-galinha a ruiva empesteava; a brasa,aquela cuí amardiçoada, se metia nos portá, nos batente, em toda brechinha de parede; taoca infestava tudo em correção; cabeçuda tinha casa na palha da cana, enquanto a sará-sará gostava de pau pijuca; mais a pió era a preta miúda que se tecia na cozinha preferindo o açúca.

O açúca tinha de tá bem protegido. A vasilha ficava pendurada em gancho no caibro, entre picumã, tendo a arça enrolada de argodão e ensebada em ólhio. A mulherada padecia pra se vê livre das formiga que aparecia em tudo: na borda da gamela, no juréu, no socadô de feijão, em toda vasilha. Tinha arguma que chegava a bejá o caxote de sá.

Eu ficava assuntando em cima da formigada; varava a noite nisso; me tirava o sono; muitas veiz só madornava. Intão tive uma aluminação: acho que já sei como cabá co'elas. Quem quisé aprendê que pres'tenção, bote bem reparo: vai percisá de uma pedrinha, um cascalhinho de nada; também tem que tê um palito de forfe, uma pedra de sá e um gorpe de cachaça. Apanha tudo isso e bota numa mesa, ou no chão mesmo.

O raçocino é este: a formiga vai no sá pensando que é açúca. Quando se precata do engano, busca locamente água. Mais a água que tá mais perto não é água; é cachaça. Ela só vai repará no gosto quando já tivé no maió porre, caino pra lá e pra cá. Nisso ela tropeça na pedra, bate co'a cabeça no palito de forfe e morre. Só ansim caba a jeriza da formigada e se vive em paiz. Até o mato tem mais sossego".

Só não sei se o Mané Bento confirmou a sua teoria. Mas não valeu a lógica e a criatividade?

Sugestão de leitura: A oleira ciumenta, de Lévi-Strauss.

Boa leitura!

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