Vida urbana

Cachorros são animais, assim como nós

Marcelo Leite na Folha.com
Um dos piores vícios jornalísticos é escrever sobre experiências pessoais como se tivessem interesse público. Relatos de conversa de repórter recém-chegado a uma cidade com o motorista de táxi local, entre outros, deveriam ser proibidos por emenda constitucional --é um direito fundamental do cidadão ser privado dessas inanidades. Mas para tudo há exceção.

A manhã de terça-feira começou, como de hábito, com uma caminhada com o terrier Snip pela praça Dolores Ibarruri ("La Pasionaria"), na zona oeste de São Paulo, um movimentado ponto de encontro de passeadores de cães. Um desses animais se chama Freud e pertence à raça gigante, escura e assustadora dos mastins napolitanos.

Apesar do nome e da categoria, passa por manso. Não raro anda solto, sem correia, convivendo de modo pacífico até com os cães que rosnam para ele.

Na ocasião, estava atado ao pulso da dona, o que não lhe impediu o ato insano e covarde: tentar morder Snip, com um décimo de seu tamanho. O terrier foi salvo pela panturrilha do dono, que foi parar no hospital.
Nada de grave, apesar da meia empapada de sangue. Limpeza no pronto-socorro, injeção de anti-inflamatório/analgésico, receita de antibiótico para a farmácia e prescrição de antitetânico para o posto de saúde. (Hospital sem antitetânico, pode?)

A acompanhante de Freud agiu com extrema gentileza e correção, depois do sangue derramado. Foi buscar o carro em casa, acompanhou a vítima no périplo de hora e meia, pagou pelo antibiótico. Mas foi incapaz de explicar o comportamento do cão, que nunca tinha mordido outro animal, racional ou não.

Quem sabe o que passa pela cabeça de um cachorro? Tratamos nosso animais de estimação como se fossem pessoas. E cometemos a imprudência de contar que se comportem como gente.

Não há mais Totós, Rex, Lessies, Jetos, Lilis e Pipos. As calçadas estão cheias de dejetos de Oscares, Antônias, Asdrúbales, Reginas e Isabelas de quatro patas. Depois das lojas de utensílios de luxo para culinária, pet-shops abarrotadas de fantasias caninas de "segurança" ou com emblemas da seleção devem ser o ramo comercial que mais dá dinheiro.

A raiz dessa confusão parece estar no que caberia chamar de "nostalgia da natureza" (ou, reformulando a expressão de Marx, "idiotia rural"). Os sintomas da patologia estão bem à vista: bacanas que se pavoneiam no asfalto com tratores de luxo apelidados de SUVs ("sport utility vehicles", os jipões), calçados para trilhas e montanhismo, mascotes de vários tipos (inclusive cobras e lagartos), engarrafamentos monstruosos para algumas horas de praia, campo ou montanha...
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