Coluna do Mirisola

O rap é o túmulo do samba

“Primeiro, Adoniran perdeu a maloca, e agora picharam a memória dele. O rap é o túmulo do samba”

Marcelo Mirisola*
Fico aqui a imaginar o autor de “Saudosa Maloca”, acompanhado de seu vira-latas, Peteleco, passando na frente dos escombros do Hotel Albion, na rua Aurora. Adoniran morava por ali. Diz a lenda que fez amizade com uns malandros que de dia carregavam sacolas no largo do Arouche e de noite se abrigavam nas ruínas do hotel. Era 1950. São Paulo vivia mais um surto de crescimento, dessa vez ligado à euforia do pós-guerra. Até que, num belo dia, Adoniran descobriu que Matogrosso, Mário e Corintiano, seriam despejados do falecido Hotel Albion.

Nada mais podia ser feito, ele fez um samba. Ergueu outra maloca no mesmo endereço - porém dessa vez eterna, saudosa maloca. Guardou uma cidade inteira lá dentro.

Em 2010, depois de 60 anos, um sujeito que atua no ramo de demolições musicais e afetivas, e que atende pela alcunha de “rapper Renegado” resolveu expulsar definitivamente os fantasmas boa-praça do Hotel Albion. Num programa chamado Som Brasil, sob os aplausos e o guarda-chuva dos Demônios da Garoa e Arnaldo Antunes (sempre ele...) como se fosse uma retroescavadeira, o sacana meteu um rap na maloca do saudoso João Rubinato, e aniquilou Adoniran Barbosa.

Nesses casos,os especialistas ensinam a não reagir diante da violência, mas também não precisava participar da demolição como fizeram os Demônios da Garoa - sinceramente, não consigo entender porque os Demônios, justo eles, foram cúmplices dessa aberração.

A coisa não para aí. O que o Rappa fez com o “Vapor Barato” também é uma baita sacanagem, no entanto os caras não comprometeram o velho casaco de general de Jards Macalé e Wally Salomão. A letra permanece intacta, apesar de uns grunhidos aqui e acolá.

Penso que meter um rap na maloca do Adoniran é mais do que forçar a barra do politicamente correto, a meu ver é algo mais babaca e cretino do que tentar achar carapinha na Monalisa, eu chamo isso de assalto seguido de estupro e seguido de assassinato. E, enquanto a Thais Araújo não se transforma (por decreto) na obra-prima de Da Vinci, quero dizer que ninguém vai enfiar drealocks nem vai enfiar rimas no meu inconsciente afetivo e sair bonito nessa história.

E então, eu penso aqui com os meus botões: será implicância minha? Que viadagem é essa de “inconsciente afetivo”?

Seguinte. Se fosse nostalgia pela nostalgia, seria eu o primeiro a descartá-la e mudar de assunto. Isso se o tal do rapper Renegado, que devia se chamar rapper Paparicado (quanto mais escrotos, mais paparicados), não tivesse enfiado “mensagens de auto-ajuda” e de “critica social” na letra do saudoso Charutinho. Porque não bastou estragar a música, esse infeliz ainda tinha que dar seus pitacos, que não foram poucos, e deixar suas lições de vida e de superação - com muita “humildade” é claro.

Um cara que se mete na maloca do Adoniran, pode ser tudo, menos humilde. Eu já ouvi fulaninho dizer que, guardadas as proporções de tempo e lugar, Adoniran também incomodou os “puristas” da época com seu português estropiado. Também sujou a língua.O nome disso, porque não é um argumento, é má fé.

Senão vejamos. Adoniran Barbosa nunca enfiou suas bracholas na letra alheia, jamais se preocupou em ser um porta-voz dos excluídos. Nunca foi um homem de esquerda. Suas letras não falavam de superação nem de auto-ajuda. Nunca apontou o dedo pra ninguém, nem cagou regras. Jamais se envolveu em luta de classes. E, segundo seus biógrafos, André Nigri e Flávio Moura, mesmo tendo música censurada, declarava-se a favor da censura “senão” – ele dizia: – “o pessoal abusa muito”. Adoniran tinha humor.

Esses caras só têm ódio, complexo de inferioridade, Nike na cabeça e sede de vingança. Ah, e é claro eles têm uma blindagem muito eficiente (já escrevi sobre isso). De certo modo, eles não deixam a periferia chegar na Vila Madalena: são leões de chácara de uma classe média masoquista e acovardada. No entanto, artisticamente falando, em termos de melodia, letra e construção poética são quase autistas. Perguntem ao maestro Julio Medaglia o que ele pensa a respeito.

E tem o rap-estupro na “Disparada” do Geraldo Vandré também. Nesse caso, quem não vai meter o bedelho aqui sou eu. Porque Vandré está vivo e deve ter adorado o que o tonto do Jair Rodrigues e um tal de Happin Hood fizeram (mensagens de superação e auto-ajuda) com sua música. Isso prova que o engajamento e o protesto dos 60’s sempre significaram a mesma coisa: mentiras. Ou seja, pagou-levou: vide nossos heróis que não morreram de overdose e morreram de mensalão.

Ah, meu Deus, eu ia falar do Adoniran Barbosa...

Cagaram na maloca dele. E agora, me recordo que quase fui apedrejado em praça pública quando, em 2004, disse que a sensação que tinha quando ouvia um rap era algo parecido com “perdeu, playboy... vai passando a carteira e esquece Adoniran”.

Hoje, depois de seis anos, acho que peguei leve.

Impressionante como esses caras – repito - são paparicados (evangélicos, caretas, sexistas, racistas, garotos propaganda da Nike) quanto mais primitivos e violentos, mais paparicados. Enquanto isso, num curioso e diabólico diapasão, dona Malu Montoro cobra 2 mil reais por uma mensalidade no colégio Santa Cruz. Resultado: os idiotas dos pais e/ou responsáveis estacionam seus carros blindados em fila dupla, pagam a porra da mensalidade e os filhos deles vão lá matar o Glauco.

Tudo bem, não era o Santa Cruz, o babaca estudava no Palmares, qual a diferença? A marca da escola? O boné de grife que mano Ferréz vai vender pra eles? A viagem pra Disney? A próxima música que Happin Hood e o Marcelo d2 vão estragar?

Em 2004, nas minhas crônicas da AOL, eu já dizia que gado é gado que a inclusão pela inclusão ia dar em merda.Viram só? Primeiro, Adoniran perdeu a maloca, e agora picharam a memória dele. O rap é o túmulo do samba.

E eu só vejo lixo ao meu redor. Gente arriada que festeja o afogamento no próprio estrume. A vida mutilada. E essa praga se estende e a hipocrisia(ampla, geral e irrestrita) prevalece. Vão meter seus raps no cafofo do Dimenstein! Reparem: os manos zoam o Redentor, zoam o prédio da Bienal, mas não zoam as agências do Itaú. Não só as grandes cidades do Brasil foram pichadas, mas a música, a literatura e as artes, o pensamento e a indignação das pessoas em geral, viraram garranchos. O amor e os afetos também.

Tá foda, Adoniran. Desse jeito não dá, trem das onze nem amanhã de manhã.

* Considerado uma das grandes revelações da literatura brasileira dos anos 1990, formou-se em Direito, mas jamais exerceu a profissão. É conhecido pelo estilo inovador e pela ousadia, e em muitos casos virulência, com que se insurge contra o status quo e as panelinhas do mundo literário. É autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô e O azul do filho morto (os três pela Editora 34) e Joana a contragosto (Record), entre outros.

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