Pensata

Monstros, desnaturados e tarados

Hélio Schwartsman
Por sete votos a dois, o Supremo Tribunal Federal (STF) negou o pedido feito pela OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) para que a Lei de Anistia (nº 6683/79) fosse revista. A associação de classe dos causídicos queria licença para processar os agentes do Estado que, durante a ditadura militar, tenham cometido crime de tortura.

O resultado não me surpreende. Como eu já escrevera aqui antes, mesmo que o Supremo estabelecesse que a anistia não protegeu torturadores, tais delitos estariam prescritos pelo menos desde 1999. E tentar fazer retroagir contra o acusado a regra que lhe é menos benéfica (a imprescritibilidade da tortura) parece-me pelo menos complicado. Envolveria ultrapassar alguns princípios que sempre estiveram na mais alta conta dos que defendemos os chamados direitos humanos. O fato de eu não me surpreender não significa que eu deixe de lamentar. O Brasil perde mais uma chance de acertar as contas com seu passado.

Na minha avaliação, houve um erro de estratégia da OAB. Essa não era uma batalha para ser travada na esfera penal e nem mesmo no âmbito dos tribunais. A essa altura, é quase irrelevante se os responsáveis pelos subterrâneos da repressão, hoje em sua maioria já velhinhos, terminarão ou não seus dias na cadeia. O que ainda importa para o país é passar institucionalmente a limpo os crimes cometidos por representantes do Estado durante os anos de exceção. Mesmo que os combatentes de esquerda se acreditassem legitimados por uma "moral superior" até a matar para lograr seus objetivos, eles eram, sob o prisma da lei da época, criminosos comuns protegidos pelas garantias fundamentais declaradas nas Constituições de 1946 e, depois, de 1967, nenhuma das quais autoriza a tortura ou o assassinato.

No mais, existem famílias que ainda não sabem o que ocorreu com seus parentes desaparecidos. E, não menos importante, a população como um todo não pode ser privada do que podemos chamar de direito à verdade histórica.

Esses objetivos teriam sido mais bem perseguidos no contexto de uma comissão "ad hoc" sem caráter punitivo, mas com poderes de polícia para investigar, intimar etc. Ele ficaria encarregada, não de sentenciar réus nem de arbitrar indenizações (nisso os governos pós-ditadura foram céleres e pródigos), mas de apurar com o máximo de detalhe possível cada caso ainda obscuro e contar o que aconteceu, descobrindo de preferência quem torturou, quem ordenou.

Antes que comecem a me escrever perguntando por que não exijo o mesmo tratamento para os "terroristas", esclareço que o problema aqui não é de ideologia, mas de fatos. Até onde se sabe, os grupos que combatiam a ditadura não sumiram com corpos de militares nem os enterraram clandestinamente. Todas as ações homicidas por eles perpetradas já foram descritas e estão bem documentadas. Simplesmente não há muito o que apurar, já do outro "lado" ainda restam pelo menos uma centena de casos não esclarecidos. Mas é claro que, se alguém levantar uma história que ainda careça de investigação, ela deveria ser incluída na pauta do comitê.

Por essas e outras, acho que, ao levar o caso para o Supremo e ver seu pedido negado, a OAB apenas tornou um pouco mais remota a chance de estabelecer uma Comissão da Verdade, como queria o ministro Paulo Vanucchi. Infelizmente, a iniciativa do titular da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência, por conta de muitos e variados erros de estratégia, foi bombardeada por uma formidável reação conservadora e, ao que tudo indica, soçobrou.

Não era, contudo, por sendas político-históricas que eu pretendia embrenhar-me hoje. No julgamento no Supremo, chamou-me atenção uma frase do ministro Ayres Britto sobre o torturador: "É um monstro, um desnaturado, um tarado".
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Comentários

Eliezer Coelho disse…
Caro sidney, a propósito da matéria postada que diz respeito às investigações sobre delitos praticados durante a ditadura militar, é de se anotar que seria realmente esclarecedor que se investigassem os dois lados, ao contrário do que consta na matéria, acredito que todos os delitos praticados, tando de um lado, como do outro, mereceriam ampla divulgação, inclusive os crimes praticados pelos hoje politicos e candifatos, cujos nomes são de conhecimento de muitos.
sidney borges disse…
Concordo com você Eliezer. No entanto sinto hipocrisia no ar quando o tema é tortura. A sociedade mostra-se indignada quando a tortura é praticada contra militantes políticos. Contra presos comuns é "natural" e tolerada.

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