Cultura

Cartões de visita

Milton Hatounm - O Estado de S.Paulo
A biografia mais breve do mundo é um cartão de visita. Às vezes, nesse diminuto retângulo de papel, reconhecemos o nome de um amigo que sumiu. Ou de um gatuno que nos deu um golpe e anda escondido por aí...

Encontrei o cartão de Gwen P.W. quando eu fazia uma limpeza geral no baú do passado. Eu a conheci em 1994 no câmpus de Berkeley, onde fomos colegas de departamento. Não sei onde está Gwen, talvez em alguma universidade na costa Leste dos Estados Unidos, pois naquele ano ela me disse que queria mudar de ares e morar na outra extremidade de seu país.

Lembro que era simpática e tinha um riso solto; conhecia muita coisa sobre literatura colonial da América hispânica, falava um pouco de quéchua e gostava de conversar sobre Sam Cooke, autor da música A Change Is Gonna Come, inspirada por Blowin" in the Wind, de Bob Dylan. Quando li o ótimo livro Like a Rolling Stone, de Greil Marcus (Companhia das Letras), me lembrei de um encontro com Gwen.

"Ah, quando penso em Berkeley nos anos 60... ", disse minha amiga, numa tarde em que ela saiu do câmpus para fumar. Gwen me perguntou como era o Brasil na década de 60. Eu disse que era melhor nem pensar nisso.

"Reagan e Thatcher enterraram muitas das nossas conquistas", disse Gwen, enquanto fumava. "Agora o politicamente correto chegou para valer. É mais uma variante do puritanismo americano."

Em 1994, quando morei em Berkeley, já era proibido encarar uma aluna por mais de cinco segundos; eu lecionava com os olhos no teto ou na parede do fundo da sala: o olhar fixo em algum ponto em que eu imaginava uma aranha tecendo sua teia. Num átimo de devaneio, podia admirar o céu maravilhoso da Califórnia. Mas nada de olhar com insistência para alguém, isso nem pensar. No começo do semestre letivo caí na besteira de fechar a porta do meu escritório quando atendia os alunos. Fui advertido pelo chefe do departamento: a porta devia ficar aberta, para que todos vissem que eu e a aluna (ou aluno) estávamos conversando sobre questões da matéria ensinada ou sobre a avaliação. Quando contei esse episódio para Gwen, ela me disse: se o chefe não tivesse agido assim, ele seria delatado por algum aluno ou professor. Depois seria advertido.

Nunca mais vi Gwen, rasguei o velho cartão da UC Berkeley e dezenas de cartões de pessoas que não recordava o nome nem o rosto. Fiz uma pausa para observar um cartão tosco e amarelado, em que estava escrito: "Adamastor - o marceneiro pontual".
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