Coluna do Mirisola

The road leads back to you

“A dúvida que me atordoava serviu para me trazer um pouco de paz e leveza ao coração, como se fosse uma linda e rouca mulher sussurrando uma canção de Ray Charles olhando pro abismo, digo, pro piano triste”

Marcelo Mirisola*
Era pra ficar um mês. No começo – ele me disse – recebeu muitas visitas. Aí o tempo foi passando e as pessoas desapareceram. Como se ele tivesse virado uma mobília no afeto dos amigos. Há três meses preso num quarto de hospital. “No limbo, Mirisola” – foi o que ele me disse. Alma resistente e luminosa, pensei. Depois de duas paradas cardíacas e de uma infecção hospitalar que lhe tiraram quase vinte quilos e, além disso, comido por câncer e esvaziado, sem intestino ou estômago (não entendi muito bem, nessas horas as vísceras me escaparam), enfim, depois de todo esse sofrimento que continuava gritando ali na minha frente, ele me disse que devido à fraqueza seria quase impossível operar o DVD que lhe ofereceram e que as enfermeiras tinham outros pacientes para cuidar, não estavam ali exclusivamente para servi-lo. As pessoas que sumiram, bem diferentes das musas que há pouco tempo o favoreciam no palco, as pessoas que sumiram não entendiam. A rotina do hospital era outra.

Ele não tinha força para sair de si mesmo. Aqui – ele me dizia, com olhar espantado e as pálpebras caídas – não se invoca nada, apenas se tem resignação e paciência. Havia mais de cinco dias que não cagava. Eu insinuei de passar um chocolate em seus lábios, e ele nem precisou dizer que estava tudo oco por dentro, e teve a delicadeza de me corrigir: “Sinto apenas o gosto da minha saliva. Não posso”.

Naquele dia, o médico não havia aparecido para lhe dar uma explicação. Ele sabia que uma nova operação teria de ser marcada, e estava cônscio dos riscos que isso – depois de tudo o que deu errado – implicava. “A vida lá fora” – ele dizia... – como se não pudesse terminar a frase... como se a sua lucidez fosse refém de um filhote de passarinho: “a vida lá fora...”

Alguns canais não funcionavam. A Globo News, por exemplo, ficava congelada numa só imagem. “Olha lá, tá vendo”. Sim, um sujeito na beira de um lago congelado. Um lindo pôr do sol ao fundo. Achei que era a propaganda do Itaú. Mas – tudo a ver – era o limbo do Guzik, e eu não pude jogar uma pedra naquele lago duro. Apesar disso, o tempo corria. O tempo corria contra. E eu, dali a poucos segundos, faria a mesma coisa que as pessoas que mais o amavam fizeram, sumiria.

Saí de lá e fui direto pro Parlapatões pra assistir à nova peça do Bortolotto, Música para ninar dinossauros. Eu via o Mario ali no palco, depois de levar três tiros no peito, refeito e em plena forma (em forma porque estava dilacerado, ele e os seus Dinossauros...) e pensava no Guzik. Tentava uma conexão, mas não conseguia. Talvez a dor, mas não era só isso. Nem o milagre seria o suficiente. Tinha uma coisa que não me deixava chorar, destoava, e buzinava nas minhas idéias, de dentro para dentro, e dizia: “a vida”.

Na saída, ouvi um tonto desfazer dos Dinossauros, ele disse: “Isso não é teatro”. Não falei nada pra ele, não falei nada pra ninguém, e fui encher a cara com meus amigos da Praça Roosevelt. Depois de dez meses isolado no Rio, estava com muitas saudades da canalhada, porém as coisas ainda não se ajustavam. Nem o Guzik no limbo do Hospital Santa Helena, nem o tonto do final da peça que não passava de uma coleção de pequenezas e rancores pretéritos e futuros de outros tantos tontos. Acho que nem seria o caso de falar em conexão, mas entendimento. Eu não entendia mais nada. Uma semana antes nosso amigo Marcos Cesana morria vitimado por um AVC, porra, logo ele. Tem gente que anuncia a morte o tempo todo e não faz surpresa. Mas o Cesana não combinava com a notícia da própria morte. E quem ficou, menos ainda.

Até aonde? Por quê? Então, pedi um uísque pra Marcinha e pensei na vida como se pudesse estar no palco e no leito do hospital ao mesmo tempo, e também morto, enterrado e ressuscitado. Nesse instante, a dúvida que me atordoava serviu – esquisito, muito esquisito isso – para me trazer um pouco de paz e leveza ao coração, como se fosse uma linda e rouca mulher sussurrando uma canção de Ray Charles à beira de um piano triste, ela olhava pro abismo, digo, pro piano triste e cantava I see / the road leads back to you...

*Considerado uma das grandes relevações da literatura brasileira dos anos 1990, formou-se em Direito, mas jamais exerceu a profissão. É conhecido pelo estilo inovador e pela ousadia, e em muitos casos virulência, com que se insurge contra o status quo e as panelinhas do mundo literário. É autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô e O azul do filho morto (os três pela Editora 34) e Joana a contragosto (Record), entre outros.

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