Universo


Ciência das cinzas

por Daniel Piza (original aqui)
É curioso como a maioria das pessoas se comporta anticientificamente, por assim dizer, no dia a dia. Mesmo em assuntos como o aquecimento global, que de fato ocorre, segundo a medição de um painel que reuniu centenas de cientistas, um banzo espiritualista – ou aquilo que Freud chamou de “sentimento oceânico” – é recorrente. Sua característica é fazer associações emocionais entre fatos semelhantes na aparência, mas não necessariamente ligados de forma comprovada ou comprovável. É por isso que diante de uma série de eventos cataclísmicos, como terremotos e a erupção do vulcão islandês, que lançou uma grande, bela e terrível nuvem de cinzas por sobre a Europa, muita gente reage na base do “a natureza está em revolta”. Ou, a cada enchente metropolitana ou seca rural, “o tempo está louco”.

É o pecado do conhecimento, alegorizado no mito grego de Pandora ou na parábola cristã do Paraíso: a humanidade há de pagar por interferir tanto na natureza, por se meter a decifrá-la e dominá-la. Nem mesmo a modernidade se livrou dessa culpa, como se vê nos movimentos romântico e expressionista, no pensamento de Nietzsche ou Heidegger, nos filmes de Hollywood, Disney ou James Bond que sempre fazem do vilão um pervertido pela tecnologia, nas crônicas nostálgicas da literatura brasileira, etc. Eis o que está por trás da exaltação da “sabedoria dos povos da floresta”, tão comum nesta Era Digital. Por certo, a experiência deles com plantas medicinais, por exemplo, não pode ser menosprezada. Mas pergunto: se são tão sábios, por que não inventaram o soro antiofídico?

Comentei no blog outro dia que o experimento do LHC, o acelerador de partículas na fronteira franco-suíça, do qual se esperam informações sobre o que seria a chamada matéria escura do universo, mal foi comentado por sua engenhosidade e beleza; causou antes medo ou arrogância. A natureza é tão intrincada e capciosa, tão complexa, que não precisa de crenças em forças “mágicas” para ter validade, para inspirar e ensinar. O mesmo vale para programas de TV como esse Vida, do Discovery (ou Nosso Planeta, Nossa Casa, que vi no GNT, mais pelas imagens aéreas do que pela abordagem “tudo está ligado”, como se nenhuma espécie pudesse ser extinta), e livros recentes como os de Marcelo Gleiser e Fernando Reinach. Já há ali entusiasmo suficiente para não se enfadar da existência.

Conservadores, no momento preocupados em ressalvar o papa dos escândalos de pedofilia ou lotando as salas de cinema para ver a história de Chico Xavier, costumam dizer que sem religião o homem perde grandeza, se amesquinha em valores utilitários. São os mesmos que não toleram que a Teoria da Evolução de Darwin implique conclusões diferentes sobre o funcionamento e a história da natureza, porque acham que elas ofendem a humanidade, quando em realidade a põem na trama natural como nenhum dogma consegue. E tampouco entendem que o agnóstico (aquele que não crê em nada sobrenatural, nem milagres nem forças ocultas) ou o ateu (que não crê em Deus, o que não precisa significar que tenha certeza de que Ele não existe) possam querer e fazer o bem. Com as guerras tecnológicas do século 20, a demonização do sujeito “materialista” – a qual não via que nazismo e comunismo tinham fortes componentes religiosos na fixidez dos valores e na pretensão salvacionista – se reinstalou na cultura moderna.

Pode-se dizer que ler o horóscopo, por exemplo, seja inofensivo; pode-se lembrar que a maioria das pessoas acredita em religiões e nem por isso deixa de usar pílula ou camisinha para se prevenir; pode-se pensar em argumentos como os de um Jonathan Swift, Edmund Burke ou T.S. Eliot, para citar três gênios do conservadorismo, sobre o peso depositado no indivíduo, como se ele fosse tão racional assim. Mas o que não se pode é ignorar que a boa ciência é investigativa, não doutrinária, e que dela se podem extrair focos de luz insubstituíveis, como brasas nas cinzas.

(”Sinopse”)

Twitter

Comentários

adriano disse…
Quando vejo a imagem acima eu penso no Georges Lemaitre que criou a teoria que deu origem ao Big Bang.
Penso no Roger Bacon que na idade media trabalhou com metodos experimentais e foi precursor do metodo cientifico.
Penso no Gregor Mendel e seus estudos sobre genetica.
Penso no Pasteur que foi um grande cientista e se dedicava a sua fé.
A boa ciencia nunca foi dogmatica.
Mas a crença em Deus não é incompativel com estudo cientifico,e ateismo não é pré condição para boa ciencia.

Atualmente a midia tem se esforçado muito para transformar a natureza no Deus de um mundo sem Deus.
Não é por banzo ou ignorancia que as pessoas estão agindo como o autor citou,mas por indução.

Fico impressionado com duas situações nesse novo ateismo militante:A falta de compromisso com a verdade,vale tudo para difamar.
E a ideia de que o ateu não consegue fazer argumentos sem atacar quem acredita em Deus.

A generalização virou arma de quem não tem argumento.
O autor vende a ideia de que todos religiosos não acreditam nas teorias de Darwin e que todos se opuseram aos estudos do cern.
Por exemplo,os catolicos nunca foram contra os estudos do colisor de particulas e aceitam as teorias de Darwin .

E essa ideia de querer colocar os erros do nazismo e comunismo na conta dos religiosos ,uma ideia absurda.

Todo ateu deve ser respeitado por suas ideias.
Mas a historia demonstra que a queda ciclica do ateismo se deve não as suas ideias,mas aos erros e a falta de qualidade de argumentos de alguns de seus defensores.
sidney borges disse…
A controvérsia entre ateísmo e crença faz parte do comportamento dual do ser humano. A vida acaba redundando num eterno Fla-Flu. Não tenho fé, baseio minha existência na "realidade" que os meus sentidos captam. Quando tento explicar o Universo sinto falta de argumentos capazes de excluir um Criador. Provar logicamente a existência Dele me é impossível. Continuo buscando a "verdade" com a humildade dos que conhecem suas limitações, mas sem a ingenuidade do camponês medieval.

Postagens mais visitadas deste blog

Mosca-dragão

Pegoava?

Jundu