Ubatuba em foco

Sobre a Carta de Dona Zelma

A carta de Dona Zelma é de absoluta clareza e precisão, fazendo com que eu a admire ainda mais por ter tamanha força e lucidez numa hora de tanta dor. Eu mesma me abstive, num primeiro momento, de esmiuçar os fatos. Jamais saberemos se um atendimento médico imediato e adequado teria salvado a vida de Mauricio, e nos prendermos a isso não conforta ou resolve, somente traz mais inconformismo e dor. A questão, porém, é bem mais ampla. Expor esses fatos faz com que nós, que ficamos, tenhamos consciência e postura crítica em relação à saúde pública de nossa cidade.

Carnaval sempre será, para mim, sinônimo de tristeza. Tenho feito um doloroso exercício de memória, ao organizar os papéis e notas que ele deixou. Vivi com Maurício nesses últimos seis anos, e mais que meu marido, pai de meu filho, ele sempre foi meu melhor amigo. Tínhamos planos, projetos (muitos), construímos muita coisa, trabalhávamos muito bem juntos. Ele veio morar em Ubatuba por opção, adorava a cidade, e sempre se indignava com o que chamava de “carência extrema de recursos básicos e da indigência cultural e intelectual que nos cerca”. Trabalhou muito e apaixonadamente, e o retorno disso pôde ser visto em sua despedida, através de todo o carinho que recebeu dos amigos, alunos e ex-alunos. Não teve o retorno financeiro, o que o fez fechar a Oficina do Vestibular no final de 2007, cujo sucesso foi inquestionável. Fechar o curso foi um grande baque. Transcrevo aqui o que ele escreveu na época:

“Retomo o fio da meada após algum tempo de confusão; de embaraço.
Fim de ciclo, novo ciclo.
Muita confusão e, com o tempo quem sabe, redenção.
Precisava muito disso; do tempo. De perda, de dor, de luto, de espera. Tempo de espanto e maresia. Afinal, vivo no litoral.
Fim do cursinho e, muito mais que isso, fim de um projeto e de um sonho. Vamos ao fundo e voltamos, é o que dizem. Só não sei se melhores. Com certeza, diferentes.
É nessas horas que recorremos à memória e ao que nos formou. Prosa, verso e música.”

O carnaval de 2007 também passou bem longe da alegria. Não só eu, mas vários outros professores, funcionários e alunos do cursinho também tiveram dengue, fazendo com que aquele primeiro mês de aula fosse mais que um desafio. Mauricio conseguiu coordenar heroicamente tudo, os professores que melhoravam substituíam os que ficavam doentes, e não houve sequer um dia com aula vaga. Mas foi dureza. Lembro de sua indignação, na época, por eu ter ficado 5 horas esperando na Santa Casa para ser atendida. Só não é maior que a minha agora, especialmente com a funcionária da triagem. Quando levamos Maurício pela terceira vez, já em estado crítico, já tendo sido notificada que era uma situação de emergência, ela nos fez esperar bastante, mascando chiclete de boca aberta e nos olhando com pouco caso, nos últimos instantes de consciência dele. Busquei por “aneurisma” no Google – todos os sintomas de Mauricio eram claros, por que não houve um encaminhamento para exames logo na primeira internação?
Voltei à época da dengue por ter acabado de achar anotações suas, de 2007, questionamentos antigos que agora mais do que nunca se fazem pertinentes:

- “Se a Santa Casa age como financiadora de vídeos e laboratórios, é dada ao público como modelo de saúde e de ação da prefeitura municipal, por que ao entrarmos lá, temos a clara impressão de estarmos atravessando o portal do inferno? Se a resposta for porque há uma sobrecarga de trabalho, não vale. O direito à saúde é CONSTITUCIONAL, dever do Estado e direito do cidadão. E, para além disso, se a população de nosso município tem dúvidas (e muitas) sobre a lisura no trato da administração da Santa Casa, encampada pela prefeitura municipal em fins de 2005, por que nossos vereadores, nossos representantes, representantes do povo, não aprovaram, dia 03 de abril, a CPI da Saúde?” (maio de 2007)

Maurício era poeta de língua afiada. Imediatamente também fez um poema, que deixa desnecessário qualquer outro comentário:

Conjugação

Eu contrato,
Tu terceirizas,
Ele morre.
Nós abafamos,
Vós lucrais
E eles que se danem.
(maio de 2007)

Ele foi embora, íntegro, de missão cumprida. Para nós, que o conhecemos e amamos, será um longo exercício do desapego e da perpetuação de sua memória. Para todos, ele saiu mostrando a imensa fragilidade da vida, que aqui em Ubatuba parece ser ainda mais frágil.

Olivia


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