Coluna do Mirisola

O silvo rouco das sereias mortas

"Garoto safo e dissimulado, criou seu mundo. Desde pequeno foi profeta e manipulador. Ele sabia o que vinha do outro lado, geralmente era coisa ruim, e mesmo assim não se protegia, esperava vir: um pouco por educação e compaixão e outro tanto por cinismo e cara de pau"

Marcelo Mirisola*
Tinha treze anos quando queimou suas poesias pela primeira vez.

Será que hoje consigo esconder as asas desse menino
Num envelope pardo?
Ainda que a delicadeza me escape
Num arroubo de afeto e outro de repulsa merecida. Será que apesar de tudo:
--- depois da queda (ainda que morto o menino)
Servirão as mesmas asas para voltar?

A tentação é grande de começar uma biografia dizendo: continuo sendo enganado. O problema é que desse jeito eu faria a maionese desandar antes do tempo, comprometeria o recheio e o final de qualquer história, tanto faz se for autobiográfica, verdadeira ou falsa. A sinceridade é um meio, entre tantos outros, para se atingir o alvo. Prefiro usar a mentira. Que é algo diferente de mentir e, no final das contas, tem a utilidade de me distrair antes de chegar à conclusão mais veemente, sincera e inevitável, qual seja: fui e continuo – com a graça de Deus! - sendo enganado.

O responsável pelo engodo é o mesmo garoto de olhos tristes e amendoados que passou a infância olhando para o chão. Ele gostava de cavar buracos na areia do playground e não suportava festa de aniversário “cadê a namoradinha?”; detestava brigadeiro e trocava qualquer carrinho match-box por uma guimba manchada de batom. Também se divertia com as palavras que levavam sua imaginação para o fundo da terra: avalanche, enxurrada e desabamento eram suas preferidas. Vestia as roupas da mãe e passava horas e horas trancado no quartinho da empregada. Às vezes, ele se escondia no depósito de materiais de limpeza da escola. Usava muito o nariz, e adorava o cheiro de tinta fresca e o cheiro de páginas emboloradas de livros antigos.

Educou-se pelo faro, e inventou uma espécie de sociologia a partir daí. Que lhe é útil até hoje, mas isso é um segredo.

O mundo dos ETs e dos espíritos lhe parecia brega e opressivo – a voz metálica dos primeiros não o convencia e também havia alguma coisa errada com aquele homem de peruca que recebia mensagens do além. Se não fosse pelo jeito afeminado e pela franjinha da peruca, Chico Xavier o teria enganado, como todo mundo o enganou enquanto ele - filhadaputamente - fingia que não entendia as trapaças nem sentia os cheiros das coisas. Que cheiravam muito mal.

Garoto safo e dissimulado, criou seu mundo.

Desde pequeno foi profeta e manipulador. Ele sabia o que vinha do outro lado, geralmente era coisa ruim, e mesmo assim não se protegia, esperava vir: um pouco por educação e compaixão e outro tanto por cinismo e cara de pau. Na verdade, o deboche era uma extensão do seu auto-didatismo. Uma garantia de que ia sobreviver a si mesmo. De fora, quem fizesse as contas, diria: sacana, filhadaputa, dissimulado. Mas e se eu dissesse que ele é quem se fodia de verde e amarelo por manter-se assim, alheio?, afinal ele não se antecipava, apenas recebia os afagos e as escarradas de boca aberta. Vivia de boca aberta. A única vantagem(?) que tirava dessa vertigem era saber de antemão o passado, o presente e o futuro do interlocutor, como se, na fragilidade da vítima, adivinhasse a intenção do carrasco. Portanto, para ele – por absoluta falta de opção – a compaixão e o cinismo sempre significaram as mesmas coisas.

Desde muito cedo, um sadomasoquista enfadado e um cristão exemplar, movido a culpa e tesão. Na adolescência, essa vocação confirmou-se: quando sumiam as revistas de mulher pelada, ele quebrava o galho com o Padre Nosso, e sempre gozava naquela parte que dizia “perdoai as nossas ofensas, assim como perdoamos a quem nos tem ofendido”.

Se tivesse um pouco mais de empenho, com certeza teria chegado à levitação. Mas ele tinha um pastor alemão para se distrair, tocava punhetas pro cachorro. Também não queria saber de playcenter nem de futebol de botão, preferia ficar na garage do prédio ouvindo o barulho da água engasgada que subia pelas tubulações, e – claro - lambia azulejos.

Uma vez, pegou um bicho geográfico na língua.

A palavra “asas” sempre esteve presente em suas redações. Ele acreditava que começando a história bem no meio poderia abri-las, alçar voo, mas suas asas nunca passaram de leques desbeiçados que apontavam para o centro, ele era um garoto que voava sim, mas que também engolia a si mesmo. Os professores já haviam se acostumado com suas esquisitices. Olhava para o chão. E não ligava de ter de ir à escola diariamente. As aulas, porém, eram muito compridas, chatas e repetitivas – por isso se cagava todo: tinha preguiça de separar o tédio da compaixão, sua velha conhecida.

Nas férias de julho apaixonou-se por uma linda garotinha e levou um pé na bunda. Aprendeu a sofrer em silêncio; seria o primeiro de uma lista interminável de pés na bunda que levaria ao longo da vida. Também sofreu por um coelho que sua mãe, à guisa da garotinha da colônia de férias, igualmente despachara aos pontapés.

O coelho até hoje capota em seus pesadelos.

Esse sentimento de rejeição durou até véspera de natal daquele 1973, quando enfiou-se numa caixa d’água vazia e morreu pela primeira vez aos sete anos de idade. Virou musgo. Nessa época seus olhos mudaram de cor. Embaçaram, e da amêndoa traziam apenas uma lembrança de pavor e resignação. Passou a viver entorpecido, às vezes era acometido por pequenas epifanias, como quando escreveu pela primeira vez a palavra morte com a caneta parker do pai. Nesse dia, fizeram uma festa de gala no além-túmulo para ele.

Não obstante as homenagens recebidas em função de sua inauguração na eternidade, faltavam-lhe amigos e coordenação motora; diziam que ele era retardado e ele só contava com a afeição dos objetos redondos e coloridos da época para dividir suas tristezas e desabamentos, ainda assim, lambendo azulejos e adivinhando a ternura do carrasco – vejam só - insistia num sonho: depois de efetivamente ter virado musgo, queria ser enterrado vivo; queria sentir a umidade da terra sobre o corpo, queria ter as suíças do Vinicius de Moraes em 1973, mas não sabia – apesar das longas tardes que passou trancado no quartinho da empregada - se resistiria a tanto encantamento, tesão e mentira.

Claro que não resistiu.

PS: Primeiro capítulo de uma breve biografia que estou escrevendo a pedido de... isso não posso dizer. Mas será publicada numa revista metida a besta e o sujeito que me fez e encomenda é um dos maiores escritores deste país. Quando a biografia for publicada na íntegra, eu aviso. Ah, fui eu quem escrevi a poesia aí de cima. Outra coisa: o lançamento do Memórias da Sauna Finlandesa não será nem no dia 21 nem no dia 24 de fevereiro, mas dia 23 de fevereiro, a partir das 18h nos Parlapatões, na Pça. Roosevelt, em São Paulo. Apareçam.

*Considerado uma das grandes relevações da literatura brasileira dos anos 1990, formou-se em Direito, mas jamais exerceu a profissão. É conhecido pelo estilo inovador e pela ousadia, e em muitos casos virulência, com que se insurge contra o status quo e as panelinhas do mundo literário. É autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô e O azul do filho morto (os três pela Editora 34) e Joana a contragosto (Record), entre outros.


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