Coluna do Mirisola

Crônica movediça

"O charlatão o aconselhou a mergulhar no estrume. O calor, em tese, evaporaria a água em excesso que havia em seu corpo. Heráclito mergulhou na merda com prazer: ele adorava esse papo de evaporação"

Marcelo Mirisola*
Com o devido termômetro e as devidas contas que me chegam todo final de mês; feito um peru da Sadia, condenado ao congelamento da véspera. Ainda assim, largado no meio de uma transamazônica que, segundo meu amigo Picanha de Tharso, me levará do nada a lugar nenhum. Quase afogado no rio de Heráclito de Éfeso (aquele rio que nunca será o mesmo duas vezes) carregado nos braços de Martinho da Vila, bêbado, recém chegado da boemia e engolido pelas sombras de J.L. Borges, e o pior: sem uma nega para curar meu porre e inapelavelmente refletido nos benditos espelhos de uma Bueno Aires que bem podia ficar ali na rua da Alfândega onde, em tempos idos, Dom João VI deve ter se lembrado da megera que o esperava em sua quinta e ponderou que há situações aparentemente sem retorno, ainda e mesmo assim ele voltou - vejam só - a gente volta, e se Dom João VI que era o Imperador dessa birosca voltou, por que eu não posso voltar – embora sendo outro - para morrer em casa, ainda que envenenado?


Por que comigo?

Heráclito foi um misantropo e pedófilo empedernido, antecedeu Diógenes (não na pedofilia, não há dados sobre isso) mas no, digamos, “pensamento sombrio”. As mesmas almas que se repetem ao longo dos séculos, mas que nunca, como as águas envenenadas de um rio, serão as mesmas, sim, depois viriam Luciano de Samósata, Schopenhauer, Nietzsche, Cioran e sei lá mais quem.

Diógenes nos diz: "Retirado no templo de Ártemis, Heráclito divertia-se em jogar com as crianças e, acercando-se dele os efésios, perguntou-lhes:

De que vos admirais, perversos? Que é melhor: fazer isso ou administrar a República convosco?"

Uma questão oportuna que, milênios depois, poderia ser ensejada em nossas pudicas casas legislativas, executivas e judiciárias. Nos últimos anos de sua vida, o homem-lúcifer juntou seus trapos e foi viver nas montanhas, alimentava-se de samambaias. Adoeceu, teve uma espécie de hidropsia – excesso de água no corpo. Voltou à cidade. Os médicos não conseguiram curá-lo, e ele – depois de evidentemente ridicularizá-los - resolveu consultar um curandeiro. Tava feita a cagada, literalmente. O charlatão o aconselhou a mergulhar no estrume. O calor, em tese, evaporaria a água em excesso que havia em seu corpo. Heráclito mergulhou na merda com prazer: ele adorava esse papo de evaporação. Tchibum! Lá foi ele. Resultado: seus cães confundiram seu costumeiro cheiro de mendigo com cheiro de merda de vaca, e o devoraram como se fosse uma carniça qualquer. Outra tese é a de que o enfezado filósofo e empedernido pedófilo tenha morrido sufocado sob a merda. O historiador Neantes de Cízico assegura que, tendo sido impossível retirar o corpo mergulhado no esterco, quedou por ali mesmo.

Eis o paradoxo de Heráclito. Logo o homem que disse que não entramos impunemente no mesmo rio duas vezes, o pensador dos fluxos e contra-fluxos, teria morrido afogado na merda grudenta, paralisante, movediça.

Tenho lá meus talentos e minhas idiossincrasias, vá lá, não sei fazer a diferença entre um arlequim, um pierrô e uma junta de emocinética; não bastasse, carrego nesse meu lombo maltratado todos os pecados do mundo, menos a omissão, será que é por isso que Deus brinca de sadomasoquismo comigo?

Num dia King Kong, noutro Saci Pererê. Logo eu que não acredito em efeitos especiais mas sou obrigado a acreditar no potencial explosivo de um Ahmadinejad, logo eu que perdi o amor daquela infeliz no dia 17 de junho de 2004, e logo eu que entendo perfeitamente - sinto todo dia quando Deus se ilumina com meus achaques – que os amores perdidos e a explosão anunciada são também implosões efetivas que reviram os intestinos do mundo que são os meus intestinos também (a despeito das piores e melhores intenções), logo eu que continuo mais perdido que cachorro em dia de mudança, logo eu que cometo a delicadeza de chafurdar na merda – gosto disso – não para me curar de hidropsia, mas para trazer notícias fresquinhas de lá; por que na minha direção?, logo eu que não pretendo ensinar o Padre Nosso ao vigário e que, depois de uma noite inteira na via Dutra costumo acordar no Santo Cristo dando bom dia aos galpões subutilizados pela companhia Docas e bom dia ao profeta Gentileza que gera gentileza, logo eu que divido com Heráclito e com o profeta a crença de que o fogo transforma e regenera, logo eu que aposto que o esquecimento é a melhor forma de vingança, ah, logo eu que jamais consigo esquecer! -, por que, meu Deus? , logo para um cara que está coberto de merda, afogado nas tormentas de Heráclito, logo para mim, as autoridades vem pedir CIC e RG?

*Considerado uma das grandes relevações da literatura brasileira dos anos 1990, formou-se em Direito, mas jamais exerceu a profissão. É conhecido pelo estilo inovador e pela ousadia, e em muitos casos virulência, com que se insurge contra o status quo e as panelinhas do mundo literário. É autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô e O azul do filho morto (os três pela Editora 34) e Joana a contragosto (Record), entre outros.


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