Opinião

Fazer do Haiti um país

Editorial do Estadão
As necessidades do Haiti, disse o seu embaixador em Brasília, Idalbert Pierre-Jean, são infinitas. Ele se referia, naturalmente, à multiplicidade de formas de socorro internacional para a desesperadora situação de seu povo, depois do terremoto da terça-feira que praticamente pôs abaixo a capital Porto Príncipe, deixando um número ainda indeterminado de vítimas - o presidente haitiano René Préval falou em até 50 mil mortos; o primeiro-ministro Jean-Max Bellerive mencionou o dobro disso. O Brasil perdeu uma figura excepcional, a pediatra e sanitarista Zilda Arns. Mas as necessidades do Haiti eram já infinitas antes da catástrofe: necessidades materiais e todas aquelas que se possam imaginar para dar um semblante de país à colônia francesa que conquistou a sua independência em 1804 - e, desde então, com breves pausas, tem passado por abalos políticos e convulsões sociais que justificam a amarga metáfora de que a sua única instituição consolidada é a da violência.

Em abril de 2004, depois da onda de distúrbios populares - sangrentos como todos quantos os antecederam - que derrubaram o então presidente Jean-Bertrand Aristide, o Conselho de Segurança da ONU aprovou a criação da Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti (Minustah) para estabelecer a segurança e a ordem pública, incentivar o diálogo político e garantir a realização de novas eleições presidenciais em 2006. Com 9 mil militares e policiais de 17 países, dos quais cerca de 1.300 brasileiros, e perto de 500 civis, sob o comando do Brasil, a Minustah era a incubadeira do que um dia poderia vir a ser um Estado funcional no Haiti. A sua base principal foi uma das raras edificações grandes de Porto Príncipe a não desabar - um acaso carregado de simbolismo. O Brasil perdeu pelo menos 14 militares, além do vice-representante da ONU, Luiz Carlos da Costa, mas os seus camaradas estão envolvidos "de corpo e alma", diz o porta-voz do Exército, na ajuda à população.

De fato, os únicos homens uniformizados que apareceram nas fotos da devastada capital no dia seguinte ao terremoto são os capacetes azuis da ONU. No mais, "são os civis que estão tentando, com as mãos nuas, tirar as pessoas sob os escombros", aponta o chefe da representação da Organização dos Estados Americanos (OEA) no Haiti e ex-enviado especial do governo brasileiro, o cientista político Ricardo Seitenfus. "Não há um helicóptero do governo, não há um guindaste, um cão farejador, não há nada", constata, como que ecoando a fala do embaixador Pierre-Jean sobre as "necessidades infinitas" do Haiti. Se não estivesse em férias na sua cidade natal, Arroio do Tigre, no Rio Grande do Sul, Seitenfus poderia ter perecido na tragédia. O prédio onde trabalhava desabou, matando, entre outros, o chefe da missão da ONU, o tunisino Hedi Annabi. Na quarta-feira voltou às pressas a Porto Príncipe, por "obrigação moral".

Ele até que estava moderadamente otimista com o rumo das coisas no país. "Haveria eleições para o Parlamento, no dia 28 de fevereiro, com segundo turno no início de março. As eleições presidenciais seriam em novembro", relaciona. "Enfim seria um ano essencialmente político, de reforma constitucional e reformas institucionais." Agora, "o terremoto faz o Haiti voltar 15 anos no tempo", deplora. O número, evidentemente, é aleatório. O fato que conta é o súbito anacronismo a que o terremoto reduziu o programa de estabilização a cargo da ONU e, em especial, do Brasil. (O presidente Lula tinha uma viagem marcada para Porto Príncipe em fevereiro; poderá antecipá-la.) O Haiti provavelmente voltou a se aproximar do "estado de natureza" de que falava o pensador Thomas Hobbes no Leviatã - no qual a ausência de governo engendra a desordem e a violência. A rigor, assim como não se trata, até onde a vista alcança, de estabilizar o Haiti, reconstruir tampouco é o verbo da hora.
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