Crônica

Quero olhá-los, não vê-los apenas...

Lourdes Moreira
Eu os vejo todo dia. Questiono-me se os vejo ou se os olho. Parecem amoitados de seus próprios corpos; acossados da sociedade. Sei não se minha rotina é escravizante ao ponto de não poder me ater a pequenos detalhes que nos segredam nos sacos encardidos, nas pernas inchadas, nos olhares vazios... Será distância que tem de mim ou que tenho deles?


Dia desses senti-me envergonhada ao estacionar meu carro e deparar-me com um deles. Maltrapilho e cabisbaixo feito cão no cio ao não conseguir desvencilhar-se da cachorra que saciara sua fome de necessidades corpóreas que todo mundo vê, mas não liga, não o ajuda a desvencilhar-se do coito já exaurido, já sofrido... Só vê, não olha. Parecia estar numa clausura tal afastamento de seus iguais tão diferentes. Denotava estar apático, olhos embaçados da vida que viveu um dia.

Vi-me caminhando na rua e ele, à frente, exalava o odor que os poros denunciam a falta do banho com sabonete e água límpida. Estava tão distante dos Direitos Humanos!

Vergonha maior foi ter apertado minhas narinas para não sentir o cheiro que seu corpo exalava. Vontade de convidá-lo a um banho em minha casa com dignidade esvaiu-se no medo do desconhecido. Quem seria ele? De onde partira com sua dor ou desilusão no seu igual?

Pensei na injusta verdade que políticos verborragem em nossos ouvidos. Tudo tão distante das necessidades dos que deles dependem na árdua sobrevivência; na necessidade de continuarem uma sobre vida aparentemente humana, mas tão desumana! Pensei numa querida amiga que não consegue sua sonhada aposentadoria apesar de ter sido sustentáculo no crescimento profissional de tantos educadores; burocracia atroz que nem mesmo o famigerado Ministério da Desburocratização conseguiu aliviar dores tão próximas a nós. Tanto dinheiro do povo desperdiçado... Correu nos becos escuros por nós não transitáveis ou pelos que deles estiveram íntimos?

Minha amiga já passou dos setenta anos. Poderia ser uma dessas mulheres que sobrevivem pelas calçadas sonhando com o NADA. Poderia exalar o odor que minhas narinas negaram-se a sentir do transeunte que a minha frente caminhava. Poderia estar acometida de depressão profunda após sofrer percalços de saúde constantes como sofreu mesmo não tendo tido o auxílio legítimo que o governo lhe nega duma parca aposentadoria.

Poderia. O que a diferencia dos que vejo todo dia é que tem sua família e seus amigos que a fortalecem diuturnamente.

È hora mais que premente de não taparmos a narina aos cheiros desagradáveis de corpos cansados da sociedade que construímos: uma sociedade voltada para valores individuais onde questionar o que os poderes constituídos por nós estão realmente realizando voltados ao bem comum dão um trabalho enorme e aí...é melhor calar-se. Questionarmos o porquê do não acolhimento de seres alienados do sobreviver pelas Secretarias do Bem Estar Social; do porquê, minha amiga, uma socióloga tão importante à nossa sociedade não conquistou ainda sua tão sonhada aposentadoria quando sabemos dos inúmeros casos de aposentados fantasmas do INSS.

Não quero tapar narinas. Quero rostos claros e não sofridos ou desiludidos em suas necessidades. Quero clareza nas decisões governamentais. Quero que excluídos sejam inseridos em decisões dos que detém o poder e que por nós foram eleitos e que , se não nos dão devolutiva a nossos anseios, que não sejam reeleitos. Que tapemos nossos ouvidos e não nossas narinas a eles.Que não tenhamos mais uma sociedade açoitada pelas verborragias políticas. Que sejamos cada dia mais abertos aos odores que nos cercam sem vergonha das decisões que tomamos nos tão festeiros dias de eleições.

Não vejamos apenas, olhemos tudo por inteiro.
Lourdes Moreira
Profª da Rede Municipal e Estadual de Ubatuba.


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