Coluna da Segunda-feira

A primeira a gente nunca esquece

“A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega o destino prá lá”
Chico Buarque

Rui Grilo
Tem dias que a gente está pra cima; tem dias que a gente está pra baixo. Faz um balanço da vida e vê o que foi bom e o que foi ruim. As vezes, os momentos bons foram tão pequenos mas são como fósforos que iluminam a escuridão.

Em 1971, comecei a lecionar na Escola Municipal Dr. Miguel Vieira Ferreira, na Cidade Dutra, logo após o Autódromo de Interlagos, zona sul de São Paulo. Foi lá que o Rubinho Barrichello fez o curso primário.

Entrava às sete, acho que saía às onze, tomava um ônibus e descia na Praça 14 Bis. Subia correndo a escada que dava acesso a Rua Caio Prado, quase sempre comendo um lanche, porque às treze ou treze e trinta começava meu curso de Filosofia no Sedes Sapientiae. Às dezessete saía da faculdade e às dezoito horas começava a primeira turma do Mobral na favela do Rio Bonito. Às vinte horas saia a primeira turma e entrava a segunda. Dava aulas até às vinte e duas. Depois voltava para casa, tomava um banho e fazia alguma coisa para comer. E ainda sempre tinha que preparar as aulas do dia seguinte ou estudar e fazer os deveres da faculdade.

Às vezes, como morava a uns cem metros da escola, lá pelas seis e quinze um aluno batia na minha porta. Era o aluno mais encapetado daquela quarta série. Mas era um aluno muito vivo. Morava a uns dez quilômetros de distância e como os ônibus nesse horário eram muito lotados ou irregulares, às vezes ele e outra menina iam a pé.

No final do ano ele se formou na quarta série e perdi o contacto com ele.

Na década de noventa, não sei se foi em uma reunião do Comitê da Bacia Hidrográfica da Guarapiranga e Billings ou de Alfabetização de Adultos, da qual participava as lideranças populares do distrito da Capela do Socorro, encontrei aquele aluno. Conversando com ele, fiquei sabendo que era advogado e que tinha encabeçado um movimento contra os altos juros e a forma de pagamento do BNH (Banco Nacional de Habitação). Nessa época em que nos encontramos era o presidente da associação do bairro e um dos maiores batalhadores e incentivadores da educação de adultos na região. Ele me contou que uma vez tinha ido a minha casa e que não tinha me encontrado. Estranhei porque minha mulher nunca havia me contado isso.

Vendo minha cara de surpresa ele se propôs a me levar até em casa para provar que já tinha ido. E aí ele me contou como achou meu endereço. Não foi pela lista telefônica, porque devido a trotes, havia solicitado à operadora que não constasse meu endereço na lista e não dessem informações. Ele sabia o meu nome e o bairro em que eu morava. Foi ao registro de imóveis e assim conseguiu.

Depois ele falou:

- O senhor se lembra que eu sempre ia a sua casa de manhã ? Em casa não havia nada pra comer e eu sabia que lá poderia tomar o café antes de ir para a escola.

Depois de tantos anos, nem me lembrava mais disso. Sua pessoa era inesquecível mas deste detalhe não me lembrava. Foi uma sensação muito boa saber que o nosso trabalho tinha dado bons resultados.

Como último texto do ano, pensei em algo mais leve e que dê a esperança de um 2010 mais produtivo.
Rui Grilo
ragrilo@terra.com.br

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