Coluna do Mirisola

Para ser civilizado

Marcelo Mirisola*

Alguém ainda se lembra de Guilherme de Pádua?

O assunto é antigo. Remete ao começo dos anos 90. No mesmo dia - ou um dia antes - em que Fernando Collor renunciou à Presidência da República.

Claro que não vou falar da crise em Honduras. Era só o que me faltava. Diferentemente do Zelaya, não sou besta de frequentar mulher de amigo meu – e ainda por cima desfrutar da casa dele. Daí que, na absoluta falta de lugar melhor para amarrar meu jegue, acabei me lembrando de uma entrevista concedida pelo ex-ator global faz uns quatro anos ou cinco anos. Recorri ao Google. Com a invenção do Google, a memória virou um treco promíscuo e perigosamente enciclopédico, principalmente para tipos esquecidos e folgados como eu.

Pois bem. Dei uma googlada, e achei o que queria. Depois de um tempão, Guilherme de Pádua, o ex-galã global, assassino confesso da filha da novelista Glória Peres, aparece na minha frente. Numa entrevista que concedeu a um jornal de grande circulação de São Paulo. Um oásis - não a entrevista em si, mas as associações inusitadas que fiz a partir das considerações do ex-galã. Ganhei uma crônica.

Entre outras coisas, Guilherme de Pádua disse que saía pouco de casa e que, às vezes, quando reconhecido, levava umas cuspidas porque seus agressores sabiam que ele, na condição de ex-monstro, jamais poderia reagir. Ou seja, por força do precedente havia se transformado num manso. O primeiro pensamento que me ocorreu foi: "Reintegrou-se".

Aí fui adiante, e pensei: "Isso não quer dizer que está arrependido. Mas o cara pagou pelo crime. Exigir arrependimento só iria atrapalhar as coisas. Aí já era demais. O que vale é que sua reação diante da volúpia da sociedade é impecável, age, portanto, dentro das expectativas do Código Penal: a lei fora cumprida à risca... esse cara é um civilizado".

Como ele, quero crer que centenas de ex-monstros, hoje, depois de cumprirem suas penas, também foram soltos e estão por aí fazendo compras no supermercado, amando mulheres bonitas e desequilibradas, torcendo para o time adversário ir para a segunda divisão, e talvez - por que não? - tenham mesmo se regenerado (isso não tem nada a ver com arrependimento, repito).

Pensei mais: "Esses caras são peças imprescindíveis para que eu possa controlar meus ímpetos homicidas. Ora, se é assim, tenho que aceitar de bom grado os gerúndios das mocinhas do telemarketing, bem como as ações sociais do grupo Xuxa".

Resolvi esticar um pouco mais meus pensamentos: "Seria bom se eu tivesse certo, mas a realidade é outra. Não é como eu quero".

Tenho que aceitá-la?

Eis a questão. Em caso positivo, corro o risco de ser mais civilizado do que ex-galã da Globo. E é aí que mora o perigo. Se eu fosse levar adiante esse raciocínio, deveria também acreditar no sistema prisional brasileiro. No Papai Noel, nos juros culturais do Itaú e no prêmio Jabuti.

O que pensar? Em primeiro lugar, meu ímpeto de cometer vários assassinatos em circunstâncias outras, foi freado. Só isso. Apenas freado. Daí que - conforme uma regrinha de três que aprendi no ginásio - posso afirmar o seguinte: eu e o pessoal que cospe no Guilherme de Pádua somos tão hediondos quanto, ou, na melhor das hipóteses, menos críveis do que ele – uma vez que não prestamos nem para dar termo à nossa monstruosidade. Civilizados pela metade. Se fosse para ser rigoroso, poderia pensar: menos civilizados do que Pádua, que – em tese - regenerou-se.

A diferença é que - até agora - os cuspidores apenas cuspiram. Os linchamentos físicos e metafísicos estão no ar: mais latentes do que nunca em mim, e no cuspe dos meus iguais. Semana passada, na Tijuca, tivemos um exemplo claro disso. Foi uma felicidade geral ver o sequestrador tombar com um tiro certeiro do atirar de elite.

A violência e a urgência do extermínio – vejam só - são sintomas da mesma civilização que perdoa e se regenera. Vale dizer: a opção social é pela "lucidez", pela lei, pela ordem e pelo cuspe a distancia, digo, tiro de elite. E o pior: aposto que esse sintoma é evidentemente mais real no atirador de elite, em mim e na torcida do Flamengo do que foi no próprio Guilherme de Pádua minutos antes de cometer o crime ou no garoto que não conseguiu puxar o pino da granada antes de levar um pipoco nos miolos. Se não fosse assim, não festejaríamos o tiro certeiro.

Sabem por quê? Eu tenho uma desconfiança: porque no “nosso caso” não se trata apenas de uma questão circunstancial, de uma filhadaputagem feita num momento de torpe loucura, de um crime previsto no Código Penal – mas de administração, Faustão aos domingos, prolongamento do sintoma de civilização, acumulação, cuspe parcelado e a longa distância.

No entanto, essa "diferença" ou aquilo que me faz estar do lado da lei e da ordem (e do linchamento) nada mais é do que um disfarce do monstro. Parece óbvio, né? Eu não me surpreenderia comigo mesmo se, qualquer dia desses, me pegasse agradecendo ao ex-galã global por ter me cedido a vez na fila do McDonalds. Ou se cumprimentasse afetuosamente o major do Bope que liquidou o sequestrador da Tijuca. Um doce de criatura, esse major, aliás. O tipo do cara que nasceu para esquentar mamadeira em festinha de criança. No dia seguinte, a TV promoveu um encontro entre ele e a senhora salva pelo seu tiro de elite. Nem a Ana Maria Braga conseguiria realizar um momento tão quentinho e família.

A pergunta é: até quando vamos esquentar mamadeiras?

Não é necessário, aqui, lembrar detalhes do crime do ex-galã, mas quero dizer que, embora me cause engulhos, tenho que - entre outras coisas - aceitar e aplaudir uma infinidade de outras aberrações e assassinatos menos eloquentes, porém da mesma magnitude. No dia a dia, não contamos com efeitos especiais, nem com cadáveres mutilados em rituais de magia negra, nem tiros certeiros explodindo cabeça de nego em via pública. Não com a volúpia que a platéia exige. Ainda não.

Mas temos a equivalência que se espraia na espuma dos dias. Por exemplo, o fato de que o Dunga está fazendo um belo trabalho na seleção brasileira. Não há diferença alguma entre esse meu sentimento anti-Dunga e a ira homicida que sinto toda vez que pago ICMS e IPTU. Quero dizer que não sou um cara muito legal. Que, a meu modo, também esquento mamadeiras. Pago o meu dízimo, e digo amém. Todavia, faço questão de pagar as contas não por uma questão de civilidade, mas por uma obrigação - que eu chamo de fingimento. Tem gente que não sabe fingir.

Ainda seguindo o mesmo raciocínio, posso me permitir certas liberdades para me distrair dos meus ímpetos homicidas, e tapear o monstro. Por exemplo, não creio na existência de um cara chamado Ahmadinejad: e, assim, acabo me sentindo um cara legal. Fácil, né? Da mesma forma que me sinto legal porque Obama é um cara legal, e porque temos que preservar a natureza. Tem fumante que apoia incondicionalmente a lei anti-fumo e faz donativos para a Apae. Viram? A civilidade pode ser algo tão fútil quanto um sentimento de equidade, justiça... de extermínio ou de vingança.

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Minha memória foi turbinada pelo Google. Hoje eu tô um perigo. Acabei de me lembrar do acidente/tragédia ocorrido com o pequeno João Hélio, também na Zona Norte carioca, que implica outros fatores que não estão necessariamente relacionados com essa crônica. Mas estão! Em outra oportunidade falarei a respeito. Acho que lembrei disso por conta do professor Renato Janine Ribeiro. Um sujeito idôneo e acima de qualquer suspeita, que poderia ser um atirador de elite do Bope. Ele dá palestras em cafés filosóficos, ensina ética e linchamento. Lembrei dele, que na ocasião da tragédia ocorrida com o garoto João Hélio, conseguiu ser mais bárbaro, mamífero e troglodita do que este que vos escreve. O Google é mesmo um perigo.

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Voltando ao raciocínio anterior. Urge novamente a regrinha de três: eu falava das felicidades, nojo e a liberdade que experimento toda vez que pago meus impostos em dia. Isto é: quando cometo uma dessas atrocidades ditas civilizadas o faço somente para fingir. Antes de ser um cidadão exemplar, sou um tolo esclarecido.

Assim me desobrigo. Já disse isso uma vez por aqui: melhor ser enganado por mim mesmo do que pelo Washington Olivetto. Se alguém me visse atravessando as ruas de Copacabana às cegas iria entender o real significado da expressão “desobrigar”.

Se eu cuspisse objetivamente em Guilherme de Pádua - e se fosse o caso -, eu não poderia nem defender civilizadamente a pena de morte para o inventor da esfiha de frango, nem tampouco para crimes hediondos como o dele. E jamais poderia concordar com Bento XVI no que diz respeito ao desconforto que é trepar de camisinha. Ou alguém acha que o papa é contra a camisinha por outros motivos?

Ninguém, enfim, é obrigado a perdoar ninguém sob o risco de não obter o perdão para si mesmo, aceita-se e ponto final. Aceita-se, entre outras brutalidades, a esfiha de frango e a pizza com borda recheada de catupiry. Aceitamos o Dunga, os golaços evangélicos do Kaká ... e as execuções sumárias. Em sendo assim, diante dos paradoxos e do aleijão da convivência social, temos, a meu ver, algumas opções; quais sejam: pagar os devidos impostos, atravessar as ruas sem olhar para os dois lados, partir para os linchamentos ou fazer uma piada.

Bom dizer que todas as alternativas são civilizadíssimas e não se excluem...

*Considerado uma das grandes relevações da literatura brasileira dos anos 1990, formou-se em Direito, mas jamais exerceu a profissão. É conhecido pelo estilo inovador e pela ousadia, e em muitos casos virulência, com que se insurge contra o status quo e as panelinhas do mundo literário. É autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô e O azul do filho morto (os três pela Editora 34) e Joana a contragosto (Record), entre outros.


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