Coluna do Mirisola

Moeda de troca

Marcelo Mirisola*
No começo dos 00 devia existir internet, mas eu não me lembro. Engraçado, né? O que me recordo é que fiz amizade com o carteiro, que era meu leitor.

Não havia Casa do Saber. As madames desocupadas passavam suas tardes nos shoppings e consumiam bolsas e sapatos em vez de Nietsche e Schopenhauer. Também não existia uma periferia amalgamada aos complexozinhos de uma classe média bundona e acuada dentro de sua culpa entediante e/ou conscienciazinha de merda: as ex-alunas do Sacré-Coeur de Marie ainda não haviam sido enquadradas pelos filhos de suas empregadas domésticas. As culpinhas – vejam só - eram resolvidas no psicanalista, no salão de cabeleireiro ou na butique. E o Chico era mais discreto na hora de sodomizar seus fãs, digo Balbinos (leiam “Leite derramado”), além do que, há dez anos, eu acreditava no amor da Marisete.

Outros tempos. Levava-se em consideração a obra – ou fingia-se – que era “a” prioridade, e ninguém ligava pro CEP do fulano. Tanto faz se ele fosse vizinho do Clube Pinheiros ou morasse num barraco no Jardim Casqueiro. Tanto faz se ele fosse bicha ou negro, amarelo ou azul. E nem faz tanto tempo assim, faz uns dez anos.

Era uma época de frivolidade e falta de profissionalismo, como hoje, mas os jornalistas – por mais filhos da puta e sacanas ... - jamais deixariam de relacionar o nome e a obra com a pessoa. Se uma Mônica Bérgamo da vida cobrisse a estréia de uma peça de teatro e não citasse o nome do autor, seria demitida sumariamente. No Brasil de hoje, entretanto, quem tem nome é pagodeiro, ex-BBB, jogador de futebol e puta. Autor? O que é isso?

Eu não vou ser ingênuo, aqui, e afirmar que as notícias não se misturavam com os interesses, mas ambos os lados – como é que eu posso dizer?... – mantinham uma certa distância. Pelo menos em público não se imiscuíam. De um lado, os canalhas. Do outro, os outros canalhas. Lula não era Collor que não era Sarney. Eles enganavam a gente, poxa!

O jogo sujo imperava, mas não era necessariamente moeda de troca. Eis a questão.

A moeda de troca.

Quero dizer que o deputado que, hoje, bate no peito orgulhoso e diz “lixem-se” não é muito diferente do repentista que fatura em cima de madames histéricas dando “aulas de criatividade”, nem muito diferente do Pedro Bial e dos clones do Bial; todos eles são iguaizinhos, têm o mesmo bafio podre e a mesma cara de pau do pastor que explora pobres coitados nessas Igrejas do capeta.

A cada minuto nasce um trouxa, isso é mais do que sabido. A diferença é que, hoje, os trouxas festejam a própria condição. Criou-se uma espécie de cretinismo de resultados. Não existe mais a vergonha de ser enganado. Aboliu-se a relação de forças, o antagonismo. Ninguém mais atua e nem tampouco tem necessidade de representar. Facilitaram a vida do sádico, que trocou o chicote e os instrumentos de tortura por dois beijinhos, um café e um pão de queijo. Como se os neo-masoquistas dissessem: pagamos o dízimo e o mico que nos pedirem, queremos nos foder, mas também queremos ter a nossa carteirinha de trouxa, nosso ingresso celeste, nosso diploma de criatividade, nossa cédula eleitoral, nosso lugar ao sol. Me chamem de otário, mas me mostrem qual é a prateleira, me incluam. “Me add!!!”

E ainda tem gente que se escandaliza quando um deputado diz “lixem-se”. O distinto parlamentar apenas atendeu a pedidos. Uma rima e um trocadilho, uma dezena de preces e tatuagens, bolsas para todas as famílias (incentivos fiscais, prêmios etc etc) e 120 milhões de bundas nas janelas virtuais pra todo mundo passar as mãos nelas. Só está faltando um banqueiro cineasta para fazer o documentário. Uma dose de lirismo aqui, 12 por cento ao mês, e uma ideologiazinha vencida acolá, e pronto! Eis uma panorâmica broxante dos anos 00.

E olha que esse começo de década prometia fortes emoções. Eu me iludi achando que o Bin Laden anunciava a tão esperada Era de Aquário.

Nada disso. Aqui, no final da década, Marques de Sade perdeu o fio da meada, Nelson Rodrigues teve o seu prazo de validade expirado, e Foucault errou feio: quando o filósofo estudou os panópticos de Jeremy Benthan, jamais iria imaginar que “a coerção punitiva do invisível” seria revertida em esculhambação e merchandising a serviço do Boninho, o crupiê do final da picada. O que era ameaça e coerção aos olhos de Foucault virou prêmio, alminha arregaçada, exibicionismo e objeto de entretenimento. George Orwell, Aldous Huxley e todos aqueles que apostaram no humano também quebraram a cara. Os picaretas, e não os absolutamente medíocres, assumiram o poder: eles escarnecem dos trouxas nas vias públicas, e esses pedem bis e querem mais, ambos se orgulham do escaninho que lhes cabe.

Os canalhas saíram da penumbra, e ostentam o mau-caráter como troféu. E as “vítimas” se locupletam. Vamos ver o que acontece nos próximos dez anos. Tenham todos uma boa semana.

*Considerado uma das grandes relevações da literatura brasileira dos anos 1990, formou-se em Direito, mas jamais exerceu a profissão. É conhecido pelo estilo inovador e pela ousadia, e em muitos casos virulência, com que se insurge contra o status quo e as panelinhas do mundo literário. É autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô e O azul do filho morto (os três pela Editora 34) e Joana a contragosto (Record), entre outros.


Twitter

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Mosca-dragão

Pegoava?

Jundu