Coluna do Mirisola

Amici Miei

Marcelo Mirisola*

Acredito que a minha geração vai produzir uns velhos ranzinzas de primeira linha. Digo minha geração, digo meus amigos. Aquelas caras que tem afinidade com o lado azul da subversão, aqueles caras que, embora a festa tenha acabado, insistem – como bem disse o Marião Bortolotto – “em ficar com o uísque aguado numa mão e a lata de cerveja vazia na outra. Não vamos embora enquanto DJ filho da puta não tocar ‘Do you wanna dance’”. Meus amigos não pechincham.

Isso posto, vamos em frente.

Diferentemente da geração anterior – consideremos aquela turminha que chafurdou em Woodstock – o meu asilo, do qual participam xaropes entre 35 e 50 anos hoje, tem tudo para ser muito mais ranzinza e quase original sob vários aspectos.

Em primeiro lugar, é evidente que somos muito mais nefastos do que esses hippies velhos metidos a naturebas que ainda existem por aí. E também bem mais cínicos, sentimentais e divertidos. Mas é bom dizer que isso é fruto das circunstâncias, e não necessariamente um mérito em si. O que não nos impede de pedir mais uma dose de vodca e tripudiar dos rabinhos de cavalo dos velhos hippies, e, enfim, não nos impede de comemorar... ora, comemorar o quê? Que tal as circunstâncias, o cinismo e o diabo a quatro que nos carregue? Se alguém queria saber o que era o “lado azul da subversão” eis uma parte do mistério decifrado.
Quero dizer que a tecnologia e as liberdades adquiridas ao longo dos últimos quarenta anos – e as limitações correspondentes – cujas pregas e orifícios estão expostos nas gôndolas dos supermercados, prescindiram da nossa participação. Viemos a reboque. Não conquistamos nada. Perdemos a Copa de 82. Não fizemos nada de relevante a não ser ficar entre o vácuo de uns caras que tiveram a sorte de ver mundo virado do avesso nos sessenta e a geração posterior à nossa, que está crescendo mancomunada com o computador. Nesse vácuo, não aprendemos a manipular a tecnologia (no sentido de dar satisfações ao próprio autismo) e, por extensão, passamos longe de ser “agentes” de qualquer mudança. Não podemos nem dizer que fomos cuspidos. Porque nos engoliram e nem sentiram o nosso caroço. Efetivamente, eu e meus amigos comedores de pizza de mussarela, permanecemos alheios.


Nem real, nem virtual.

As nossas marcas ou as únicas ligas que realizamos estão melancolicamente grudadas nas falecidas páginas daquilo que, no século passado, chamávamos “revista de mulher pelada”. Entre o êxtase e o insosso, uns grisalhos e outros carecas, todos barrigudos, aqui chegamos. Num lugar cujo tempo passado não serve de parâmetro, não tivemos sequer um navio para ancorar no espaço. Nossa musa se matou por engano e na hora errada.

O tempo de mudança que vivemos entre uma geração e outra, também – para nosotros - é tempo defasado. Vejam só. Quem nasceu há dez anos não precisa mais esperar vinte anos para um videocassete virar um Blue-Ray. Donde se conclui que seremos – sempre fomos, desde criancinhas - uns velhos predestinados com os achaques e a imobilidade impostas pela data de nascimento.

Bom ou ruim? Se considerarmos que o final da picada foi o começo do nosso caminho e que será o mesmo final da picada quando nós e o Lulu Santos chegarmos lá, as duas coisas, bom e ruim. Um velho que é velho desde cedo não vai estranhar as pelancas caírem pelas tabelas, sempre foi assim. Estamos acostumados ao desdém do calendário, e a decrepitude de nós mesmos. Portanto, se nós, os tiozinhos comedores de pizza de mussarela, não reclamarmos do DJ e não incendiarmos o nosso cirquinho de pulgas, vamos fazer o quê? Ler os livros do dr. Shinyashiki?

Não sei se estou sendo claro: mas posso falar da geração anterior para fazer um contraponto. Ao contrário de nós, que somos velhos decrépitos desde cedo, não tem cabimento – por exemplo – um Caetano Veloso existir com 70 anos de idade. As idéias e as esquinas dele, a Ipiranga com a São João, são iminentemente jovens, ficaram encantadas lá atrás (inclusive na nossa memória afetiva – que é uma putinha vadia). A mesma coisa vale pro Chico Buarque: que não vai remoçar ao decretar o falecimento da melodia e nem vai convencer ninguém de que o Rap é uma conseqüência natural do Tom Jobim. Não existe Viagra para o espírito. Isso é ridículo. Da mesma forma que é meio ridículo e está cada vez mais difícil acompanhar as reboladas do Ney Matogrosso - espero sinceramente que ele se aposente daqui a dez anos, aos oitenta.

Quem é que pode levar a sério um Jabor imprecando contra os gerúndios das mocinhas do telemarketing? Esses jovens eternos, da geração do Jabor, não entendem que os gerúndios – apesar de trazerem em si um mal agouro patente – são tão fundamentais para a formação da época broxante em que vivemos, como Glauber Rocha foi para a formação intelectual deles. Essa turma dos sixties – diferente da gente – não tem um álibi para ser fuleiro, para ser ranzinza.
E isso, “álibi”, é o que não nos falta. A começar pela Xuxa e pela AIDS que são as nossas fadas madrinhas goela abaixo. E o Mussum que é o nosso “leitmotivis no forévis”.


Aliás, se não for para ser fuleiro não tem graça, né Pascotto? Do nada para lugar nenhum. Velhos. Bêbados. Meio impotentes, meio mussarelas. Chupadores de buceta. Encrenqueiros, falastrões, amici miei. A gente se ilude que é Rock and Roll mas, no fundo, estamos jogando dominó na pracinha. Nascemos assim, surfistas do vácuo, sem charme nem brilho, espremidos. Se o calendário foi negligente conosco, azar do calendário.

Nossa garota de Ipanema é a Penélope Charmosa. E ela jamais vai virar uma hostess de luxo, sabem por quê? Porque ela é um desenho animado, ficção. Uma ficção pobre se comparada a uma Brigitte Bardot. Tudo bem. Porém, ela nos desobriga do tempo e do lugar, nos desobriga da história (até daquela repetida como farsa...), não temos nada a ver com os processos e os ciclos correlatos, a nossa fadinha estelionatária nos livra do épico e do engajamento com a fauna e a flora. O nosso mico leão não é dourado, é o outro. É o mico das cartas de baralho.

Sem um épico e com uma revolução a fazer por minuto, perdemos as estribeiras e a estética, e junto foi o senso do ridículo pro beleléu. De onde vocês acham que saíram as ombreiras das nossas minas e essa nostalgia desgraçada por algo que não vivemos? Somos bibelôs daquele velho museu de novidades que o Cazuza vislumbrou quando levava uma piroca no rabo. Espremidos em lugar nenhum.

Além da cerveja quente, qual a parte que nos cabe nesse lugar nenhum? Ora, apelar: pois somos amigos do zelador, desterrados, o fundão, a escória queridinha da mamãe. Mini-gângsters. Uma Quadrilha de Morte, e o que nos resta é oferecer nosso amor canastrão a Penélope Charmosa que – lamento dizer isso, Márião – caiu irremediavelmente nas garras do Tião Gavião.
Adquirimos, enfim, uma liberdade pobre de desenho animado, mas liberdade. O que não ocorre com a geração anterior à nossa, e nem tampouco com essa molecada virtual de hoje em dia – que manipula o próprio autismo. Os primeiros são reféns da juventude, e os outros reféns da tecnologia. E nesse meio-de-campo, adivinhem quem vem para o jantar?

- O Paolo Rossi nos entubando para o resto dos nossos dias.

Se existisse um lugar no vácuo que pudesse nos representar... pensando bem, esse lugar – até porque a Lídia Brondi virou evangélica - seria o peido. Assim, meus queridos amigos, é que a nossa geração vai passar: na frente da TV, perplexa, perdendo a Copa do Mundo de 82 por todas as eternidades, vamos embora feito um peido despercebido, feito um peidinho triste, espremido, livre e ranzinza desde o começo até o final da picada. O nosso único alento é que o Lulu Santos vai desaparecer junto, “come fa un’onda”, amici miei.

*Considerado uma das grandes relevações da literatura brasileira dos anos 1990, formou-se em Direito, mas jamais exerceu a profissão. É conhecido pelo estilo inovador e pela ousadia, e em muitos casos virulência, com que se insurge contra o status quo e as panelinhas do mundo literário. É autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô e O azul do filho morto (os três pela Editora 34) e Joana a contragosto (Record), entre outros.


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