Coluna do Mirisola

1. Sobre Heróis e a Cigarrinha-da-Espuma

Marcelo Mirisola*
Cada vez que um matusquela nascido neste “país continental” - como diria José Sarney antes de citar Ruy Barbosa - ganha uma medalhinha ou sobe num pódium é um chilique coletivo – no ar, na terra e na água. Dessa vez foi na água, com o tal de Cielo. A Veja estampou na capa: “Herói”. Com direito aos olhos azuis brilhando sobre o fundo negro da revista. Qualquer semelhança com Leni Riefenstahl não é mera coincidência.


Eu não sei qual é a velocidade que o Tucunaré desempenha nos rios amazônicos, mas aposto que qualquer Boto desliza na água mais rápido – e com mais graça – do que esse rapaz cheio de garra, disciplina e determinação: novo herói do Galvão Bueno. Por que Herói? Porque ele faz a mesma coisa que uma Anchova? E o outro que dirige carros? Também é herói porque ficou três dias em coma? Não entendo. O que esses playboys que pisam em aceleradores e trocam marchas fazem melhor do que os motoristas da Viação Cometa que passam noites inteiras acordados sem dar uma pescada – nem pra pegar Cielos – pelas estradas do Brasil?

Os exemplos são tantos, e tão enfadonhos... que a única conclusão a que eu posso chegar é a seguinte: enquanto comemorarmos o fato de fazer coisas que pistões, insetos e bichos fazem com maior agilidade, graça e competência, estaremos todos reduzidos a ser mais insignificantes do que a nossa velha conhecida cigarrinha-da-espuma que – vejam só - salta setenta vezes o próprio tamanho. A cigarrinha é um exemplo clássico da limitação humana; sempre que algum “herói” aparece na capa da Veja, eu me obrigo a citá-la. Mal comparando (porque a cigarrinha não dá entrevistas) é como se um Ronaldinho, de 1,75m, saltasse sobre duas estátuas da Liberdade, uma sobre a outra. E aí, Galvão Bueno? Vai encarar?

2. Arnaldo Batista, Simonal e Tim Maia

Em vez de Loki, o título do documentário que conta a tragédia de Arnaldo Batista, podia ser: “A capacidade que determinadas mulheres têm para foder com a vida de determinados homens”. Pelo menos a Rita Lee não apareceu no filme para dizer que o coitado que ela resolveu apagar dos seus registros é um gênio. Achei honesto da parte dela. E, para ser sincero, não podia esperar nada diferente de uma senhora que acende incensos, reza para alfaces hidropônicas e condena os consumidores de chuleta ao fogo dos infernos. Parceirinha do Jabor. No documentário, algumas pessoas dão depoimentos sinceros, e confessam a incapacidade diante do desconhecido – o que já é alguma coisa ou pode ser coisa nenhuma, depende do ponto de vista.

Paulo Henrique Fontenelle, o diretor de Loki, costurou bem os labirintos que levaram Arnaldo Batista a si mesmo, mas podia ter evitado o deslumbramento diante de depoimentos de bichinhas internacionais e quiméricas do feitio de Sean Lennon, não precisava disso. Já temos as nossas, muito mais dispensáveis e muito mais afetadas, era só chamar um DJ da MTV e pedir para ele falar meia dúzia de redundâncias, e pronto.


Penso que a única pessoa que tem autoridade de fato para se manifestar com relação à tragédia que aconteceu na vida de Arnaldo Batista (além do próprio), é a mulher que o resgatou da UTI e que cuida dele até hoje. Como se a atual governanta de Batista fosse o avesso da Rita Lee, sendo que as duas – passados os anos - acabaram ficando uma com a cara da outra. Curioso, né?

Agora, o que me deixou transtornado foram os caroneiros e sanguessugas. A figura que não desgruda da minha mente é Nelson Motta. Sempre ele, de óculos escuros, nos lugares certos e nas horas adequadas – tirando sua casquinha. Virou oráculo. Só no Brasil mesmo, a gente merece ter um oráculo das casquinhas. Quem viu o documentário “Cartola” deve lembrar de Nelson Motta, quase um garoto, entrevistando o autor de “O mundo é um moinho”: em dado momento, não sei se foi antes ou depois de fazer uma média com o fascistão do Roberto Carlos, Motta atribui uma certa “realeza” ao sambista. A meu ver, algo tão sórdido e repulsivo quanto as sífilis e gonorréias e o apodrecimento de Cartola em vida. Aquele velho discursinho feito à clef - ontem e hoje, desde sempre - para o deleite e consumo do público lírico e asqueroso do Cine Unibanco. Uma bravata que serve – já escrevi sobre isso, mas vou repetir: - para aplacar conscienciazinhas pesadas. Uma mentira que desde sempre rendeu subsídios simpáticos e muito prestígio para aproveitadores do gênero. Hoje virou política de estado no Governo Lula; estamos, enfim, atolados até a medula nessa merda generosa - às vezes admirável e iluminada (reconheço) - chamada cultura popular brasileira. Ou, como diz o próprio Cartola, “Corra e venha ver o sol”.

Corra de quem? Da polícia?

Nelson Motta nunca precisou correr da polícia, e de ninguém, sempre foi ao encontro do aconchego. Motta é o homem cordial. E, é claro, não podia deixar de escrever a biografia de Tim Maia, e de dar seus pitacos sobre Wilson Simonal, dessa vez como entrevistado. A sentença de Motta: “Simonal era um gênio, Tim Maia também, bastava fazer três pedidos a ele. Arnaldo Batista o maior de todos”.

É muito fácil – depois de quase 40 anos - chegar a essa conclusão esparramado numa chaise-longue. E quando eles estavam vivos e gritavam “eu posso voar” quem é que lhes dava asas, crédito?

Eu só queria ver Nelson Motta, nos 70’s, proclamar que Simonal era um gênio. O documentário do “seu Creysson” defende a tese de que Simonal não era um dedo duro, porém tinha licença para ser um filho da puta. Até aí, nada demais. O problema é que, na época em que Arnaldo Batista enlouqueceu e que Simonal foi apagado do mapa, e que Tim Maia foi proibido de pisar na Rede Globo, nem Nelson Motta nem nenhum outro oportunista deram um pio. Omitiram-se, enfiaram o respectivo rabinho de grife entre as pernas. Não ia ser “bacana”, e eles, Motta e assemelhados, são caras antenados, legais e descolados. Jamais comprometeriam o savoir-faire, eu acho que é assim que funciona. Né? Dá nojo.

3. Plano de vôo

Tem um amigo meu que vai tirar brevê. O plano é decolar uma única vez. Antes disso, porém, ele precisará de 30 horas de vôo acompanhado de instrutor. Um certo treino. A única coisa que não pode acontecer é errar o alvo, já o preveni. E eu imagino que vocês já saibam que alvo é esse... não?!

O Aeroclube de Brasília fica em Luziânia, dista no máximo 60 km da Praça dos Três Poderes. Mobi, esse é o seu codinome, já fez sua inscrição no curso de pilotagem – aliás, terá cumprido suas primeiras horas de voo quando essa crônica for publicada. No grande dia voará baixo, e a história será mais rápida que os Mirages da base aérea de Anápolis. Não vai dar tempo de interceptar Mobi, o gordo. Vejam só que ironia do destino. Logo ele, Mobi, o gordo que terá passado pela vida lentamente, quase arrastado. Estou dando apoio psicológico (que ele não precisa, diga-se de passagem) e, principalmente, apoio logístico – no sentido de mobilizar simpatizantes e arrecadar fundos. Mobi é um glutão, deve pesar uns 130 kg e adora Spaghetti à Marinara, Black Label e camisas havaianas. Antes de entrar no projeto “primeira decolagem”, trabalhava de caixa no Bradesco. O cara é revoltado na medida certa, porém tem um custo. Tirando as despesas com o material do curso de pilotagem, ainda temos que garantir hospedagem e entretenimento; isso quer dizer garotas de programa orientais e um anão para lavar e enxugar-lhe as partes íntimas. Muito justo, eu acho. Diante da missão, é pouco. Mobi nasceu para ser um candidato a terrorista, acho que leva jeito – sobretudo por conta do seu passado de bancário. Quer desfrutar cada momento, literalmente como se fosse o último. Grande piadista. Quando eu o provoco, ele diz que está fazendo de Luziânia sua Las Vegas. Cada um – diz Mobi: – tem a despedida que merece. Um predestinado. Quem quiser cooperar, por favor, deposite o dinheiro na minha conta-corrente (que é pública e notória). As despesas são grandes, mas vai valer a pena.

A propósito. Estávamos, eu e um grupo de empresários do ramo têxtil, discutindo o melhor avião a ser usado na empreitada. No começo, influenciados pela estética do 11 de setembro, pensamos em algo grande, mas aí vimos que ia dar muita bandeira, e optamos mesmo pelos aviões de instrução do Aeroclube de Brasília – embora o poder de destruição desses merdinhas seja uma piada. Foi um dilema, até que chegamos ao google e aos explosivos plásticos de alto poder destrutivo. Buuummmm!!!

Outra coisa muito importante é garantir o melhor ângulo para as equipes de filmagem. Para isso, chamamos três cineastas diletantes, que chegarão no dia combinado. Vai ficar um pouco mais caro, e – eu garanto - bem mais bonito. Um dia seco, céu limpo, típico do Cerrado. A história tem seu preço, diria... Zé Sarney.

Digamos que o “evento” será filmado sob os mais variados ângulos – em tempo real. Na hora do impacto, várias câmeras registrarão a explosão (ou seria implosão?). Direto pro You Tube. Em termos simbólicos, embora o Aero-boero não seja nenhum Jumbo da American Airlines, apostamos num resultado mais virtuoso do que o alcançado na ocasião do derretimento das Torres Gêmeas. O Brasil finalmente vai fazer parte da memória planetária com um negócio mais apelativo que as bundas das nossas mulatas e a corrupção dos nossos políticos. Apenas dois inocentes serão sacrificados, Pedro Simon e Cristovam Buarque. Fazer o quê? A história – como diria... Zé Sarney... - é assim mesmo. Pretendo me candidatar à vaga do Zé na “acadimia”.

Por fim, me comprometi a amparar a família de Mobi e cuidar do seu inventário. Todos os direitos de imagem e de exposição serão revertidos para a Apae de Osasco, terra natal do gordo. Está tudo registrado em cartório. Vai ser lindo ver aquele chiqueiro explodindo pelos ares. Viva o Chico Barrigudo!

*Considerado uma das grandes relevações da literatura brasileira dos anos 1990, formou-se em Direito, mas jamais exerceu a profissão. É conhecido pelo estilo inovador e pela ousadia, e em muitos casos virulência, com que se insurge contra o status quo e as panelinhas do mundo literário. É autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô e O azul do filho morto (os três pela Editora 34) e Joana a contragosto (Record), entre outros.


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