Coluna do Mirisola

Cadê?

Marcelo Mirisola*

Indo de Jaguariúna em direção ao sul de Minas, ou rumo a Ribeirão Preto e Franca, o motorista vai topar com várias praças de pedágio. Apesar do asfalto conservado, da sinalização impecável e de todos os serviços disponíveis ao usuário, a viagem meio que empaca.

Ou é decepada pela cancela que se ergue ao comando da mocinha do guichê – depois de efetuado o pagamento, é claro. Se eu fosse afeito a metáforas sofisticadas, diria que se trata de uma guilhotina que corta para o alto, no sentido contrário.

Todavia o que me interessa nesta crônica não é discutir tarifas & serviços... mas as fotos, os nomes e as idades das crianças e adolescentes desaparecidos e impressos junto com os respectivos recibos de pedágio. Uma idéia magnífica, digna de aplausos.

Fazia muito tempo que eu não pegava uma estrada (dirigindo) ... e imagino que outras praças de pedágio devam ter adotado o mesmo sistema da “Rodovias”. Isso, de certa forma e apesar das altas tarifas,é reconfortante para aqueles que,como eu, tiveram seus parentes desaparecidos.

Faz onze anos que perdi Sicilia.

O curioso é que, somente na semana passada, me inteirei (ou dei o devido crédito) a este sistema de buscas. Eu mesmo, há onze anos (quando Sicília nos deixou...) me encontrava em situação semelhante. Quase desaparecido. A diferença é que eu ligava para casa duas vezes por ano, no aniversário da minha mãe e no aniversário da garota, dia 26 de maio, dez dias depois. À época – confesso, com muito pesar - não acompanhei as buscas e também não me interessei em procurar ninguém, mesmo porque eu mesmo não sabia onde me encontrava.

Lembro vagamente de clínicas psiquiátricas, de alguns pesadelos recorrentes com engradados de cerveja e ratazanas castanhas ... e até me recordo que vivi alguns meses na companhia de Hare Krishnas, o lugar, se não me engano, era a praia do Santinho. Florianópolis, idos de 1998.

O que vale é que, junto ao recibo do pedágio, veio a foto de David Hussein Ali de Lucena: desaparecido em 2001. Dois anos depois de Sicília, que em maio passado completaria 17 anos.

Nem as datas nem a idade atual do garoto coincidem com os dados confusos que fervem em minha memória. Lembro apenas que perdi a alma numas dessas praças de pedágio, acho que foi em Jaguariúna – em 1986.

Em todo caso, olhando bem a foto, agora me veio a quase certeza que topei com este David no réveillon de 1998, lá na praia do Santinho. O réveillon com Krishna.

O garoto era um devoto (aprendiz) que não se atrevia a olhar nos olhos de Kesava, chefão dos hare hare. Lembro que ele dançava ao redor de uma fogueira, repartia umas gororobas com os demais e, meio que abobado, rezava para as estrelas e discos voadores. Isso, confesso, me incomodava, apesar de eu estar alheio a tudo na época. E até hoje fico bastante incomodado com as lembranças daquela noite. Não sei se é verdade ou ficção. O problema são os detalhes. Acho que é melhor não descrever a madrugada de primeiro de janeiro de 1999. Quando curraram o garoto. Também não quero falar em defumadores, incensos e vidas passadas. Ainda assim quero deixar registrado o meu constrangimento. E um dado: pior do que a curra em si é o fato da omissão diante das coisas da vida. Isto igualmente me incomodava/incomoda muito mais. Até hoje. A ponto de – vejam só - desautorizar o sobrenatural e a realidade, como se fossem uma coisa só.

Para mim Deus existe sim, só que está longe de ser perfeito. Deve ser um matusquela, como diria a Araci de Almeida; ou quem sabe, poderia ser – por que não? - um empregadinho do sr. Civitta. E se Deus for um colunista da Veja? Já pensaram na encrenca em que estamos metidos?

Voltando ao réveillon com Krishna. Eu olhava aqueles idiotas, e pensava: “Não me importa que o sujeito seja um doido varrido e,sobretudo, não me interessam os motivos que o levaram a estar coberto de razão em sua própria loucura”.


O louco, como dizia Chesterton, é o sujeito que perdeu tudo, menos a razão.

Enfim. Quero dizer que nada justifica o sumiço sem aviso prévio. Para botar fé no próprio taco é imprescindível desacreditar em algo (reconhecer firma e assinar embaixo). Nem a loucura se justifica e/ou se manifesta sem aviso prévio. Para que servem os sinais? Se o sujeito vai se enfiar numa roubada qualquer, que avise antes e assuma a responsabilidade diante de si e dos seus parentes. Depois que se dane. Que vire santo, lobisomem ou que evapore...

Por isso escrevo esta crônica: é a primeira vez que falo no assunto publicamente. Acho que tenho autoridade para fazer uma sugestão aos pais e familiares de Davi.

Eu sei que, sem autorização judicial, é impossível... mas seria muito oportuno se fizessem uma blitze nos templos de Krishna. Do tipo pente fino; de onde você veio, filho de quem: identidade e certidão de nascimento . Vale o mesmo para TFPs, Oshos, Vale do Reino Encantando e similares.

Infelizmente, temos que contar com a possibilidade de tráfico de órgãos... temos a selva Colombiana , a possibilidade de abdução, sei lá. Amor bandido? Quem vive essa situação não está livre do imponderável. Aí não tem jeito mesmo.

Mas essas seitas e instituições têm CGC, são oficiais, pagam impostos(?) e , imagino, deviam ter a obrigação de abrir seus arquivos. Creio que é difícil mas não é impossível achar um David no meio de tantos Golias. Saudades da menina.

Outra lembrança que tenho de David remete a Mahesvari, mulher de um tal de Balbíno, um grande canalha por sinal. Que - entre outras barbaridades - a escravizava, a ela e aos outros pobres coitados que lhe deviam abrigo. Enquanto ele ficava no terreiro enrolando a língua e tendo convulsões, ela, a linda Mahesvari e os agregados, iam para os semáforos vender incensos e livrinhos do mestre deles, cujo nome, se não me falha a memória é Bhaktivedanta Swami Srila Prabhupada.

Ah, esse google. Ajuda um bocado a lembrar das coisas. E eu lembro como se fosse hoje. Ela tinha ancas larcas, seios fartos e sorria por metro quadrado. Um dia antes de David ser currado, Mahesvari (eu acho...) me tomou pelas mãos e disse: “Ainda que não quiser, ela nunca estará longe de ti”, acho que foi isso.

Na hora não entendi. Agora, olhando esse recibo de pedágio, faz algum sentido.

Do mesmo jeito que Mahesvari me tomou pelas mãos, eu guardei sua palavras em minha memória – embora na ocasião tivessem me passado despercebidas. Só as palavras, porque as ancas e os seios! Por Krishna, que gostosa que era aquela mulher! Como se eu soubesse que, um dia, iria usá-las, as palavras e minha sem-vergonhice, em meu benefício e em benefício de outrem. As palavras, as ancas e os seios fartos. Tudo.

Pois bem, o dia chegou. Talvez Mahesvari quisesse me dizer outra coisa... ainda não sei. Não importa, vale que agora tenho essa possibilidade. Se alguém ouviu falar em um garoto chamado David Hussein Ali de Lucena, essa crônica terá valido a pena. O telefone da ABCD (Associação Brasileira de Busca e Defesa da Criança Perdida, é : 3337 3331 ou www.maesdase.org.br . A foto dele está lá.

Quanto à Sicília, infelizmente, quase perdi a esperança. Mas quero dizer a ela que, seja lá aonde estiver, eu estarei ao seu lado, para sempre.

PS. 1. Memórias da Sauna Finlandesa é o título do meu novo livro de contos, que vai sair pela editora 34, ainda nesse ano. Aliás, estou muito feliz por ter voltado para a 34.

2. Pro pessoal do Rio de Janeiro: dias 25 e 26 de julho, às 18h.30 min, vai ter o "Monólogo da Velha Apresentadora" no teatro Sergio Porto. Essa peça faz parte da mostra dos Satyros na cidade. Apareçam.

*Considerado uma das grandes relevações da literatura brasileira dos anos 1990, formou-se em Direito, mas jamais exerceu a profissão. É conhecido pelo estilo inovador e pela ousadia, e em muitos casos virulência, com que se insurge contra o status quo e as panelinhas do mundo literário. É autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô e O azul do filho morto (os três pela Editora 34) e Joana a contragosto (Record), entre outros.


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