Coluna da Segunda-feira

A Partida – Uma reflexão sobre a morte

Rui Grilo
Dizem que uma das características do ser humano é o fato de reverenciar seus mortos.

O filme “A Partida”, oscar de melhor filme estrangeiro de 2009, leva-nos a pensar sobre as relações vida/morte/dinheiro e a valorização de cada momento da vida.

O personagem, membro de uma orquestra, com a dissolução desta, se vê com o problema de conseguir dinheiro para sobreviver e pagar as dívidas. Retorna à cidade natal e consegue um emprego com pagamento adiantado. Pensava que era um trabalho no ramo do turismo ; depois descobre que é para vestir e arrumar a aparência dos defuntos. Seu primeiro impulso é recusar, mas a necessidade de sobreviver fala mais alto.

Enfrenta a hostilidade pela atividade exercida e chega a perder a própria mulher. Acostumado a reverenciar a obra de Bethoven, começa a perceber a nobreza de sua função, ao acompanhar todo o respeitoso ritual que lhe é ensinado pelo patrão. Também começa a perceber o grande auxílio que presta às famílias em um momento em que estão fragilizadas pela dor, restaurando as cores e a beleza daquele corpo que caminha para a putrefação. Estas, confortadas, dão-lhe grandes gorjetas, que lhe permitem um padrão de vida não experimentado anteriormente.

Seu patrão, durante uma refeição, ao saborear ovas de salmão, mostra-lhe que a vida é feita de renovação, que a morte é uma necessidade. Para manter o corpo vivo, outros corpos são sacrificados.

Ao descobrir que está grávida, sua mulher retorna. No entanto, uma dor o incomoda: ter sido abandonado pelo pai. Quando é avisado que seu pai havia morrido, se recusa a ir vê-lo. Sua mulher quebra sua resistência e ele aproveita o que havia aprendido tratando-o com toda a reverência, restabelecendo a relação com o pai nesse último encontro com o pai.

O filme “A Festa da Menina Morta” tem em comum com “A Partida”, além da morte, a belíssima fotografia que retrata a paisagem de Barcelos, na margem do Amazonas.

Da menina desaparecida, Santinho resgata da boca de um cachorro, trapos ensangüentados que se supõe serem os restos do vestido da menina, vistos pela população local como objetos sagrados. Este fato confere ao portador do objeto, Santinho, um status de divindade que usa e abusa para manter o seu histérico poder sobre os outros. Da comemoração anual desse fato gira a economia local e articulam-se toda uma rede de tensas relações sociais.

Fato semelhante a este, da morte de crianças e mesmo de adultos, marcam lugares que entram para os roteiros de um tipo particular de turismo que, de certa maneira, garante a sobrevivência e melhores condições de vida para muitas pessoas, como a parábola das ovas do salmão apresentada no filme “A Partida”.

Um fato interessante é que há uma cena em que se jogam coroas de flores nas águas, cena muito semelhante àquela cerimônia dos parentes falecidos no recente desastre de avião da Air France ocorrido no Brasil.
Rui Grilo
ragrilo@terra.com.br

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