Opinião

A dúvida depois do discurso

Editorial do Estadão
A duas semanas de completar apenas cinco meses na Casa Branca e a braços com a maior crise econômica experimentada por seu país em 60 anos, o presidente Barack Obama terminou na quarta-feira de cobrir as bases, como se diz em beisebol, de toda a agenda política americana no mundo. Ele já disse a que veio em relação a todos os temas e a todas as regiões de interesse dos Estados Unidos - da proliferação nuclear ao diálogo com Cuba. Mas nunca antes desse dia ele havia recorrido tão intensamente à sua superlativa eloquência para fazer o que tem sido a sua evidente prioridade na cena internacional: deitar as fundações de um novo arcabouço para o relacionamento de seu país com aliados e inimigos, a partir de uma percepção também nova da presença americana no globo.

Numa atitude à altura da importância da esfera árabe-muçulmana de 56 países e 1,4 bilhão de habitantes para o desenrolar dos maiores problemas de Washington no exterior - as guerras no Iraque e no Afeganistão e o programa nuclear iraniano -, Obama escolheu a milenar Universidade do Cairo para proferir o até agora mais longo (55 minutos), mais abrangente (7 temas) e mais audacioso discurso de sua presidência. Ora parecendo um sermão (ao pregar a tolerância religiosa), ora uma conferência (ao discorrer sobre a contribuição islâmica para a civilização americana), ora uma contrição (ao admitir a participação dos Estados Unidos no Golpe de Estado de 1953 no Irã), ora, enfim, uma exortação política (para a paz no Oriente Médio), a sua alocução foi um estupendo ato de fé no poder da palavra.

Obama não lançou nenhuma cartada nova para o fim do conflito israelense-palestino - o nervo exposto da ira árabe contra a América e pedra de toque do "novo começo" que propôs ao islã. Aludiu de passagem aos compromissos assumidos pelas partes no chamado Mapa do Caminho, de 2002, apenas para dizer que são claros, e à Iniciativa de Paz Árabe, do mesmo ano, apenas para dizer que foi um começo importante. No mais, porém, equilibrando-se entre a franqueza, a contundência e a equidade, disse o que árabes e judeus jamais tinham ouvido de um presidente americano. Reafirmou de saída os "laços inquebrantáveis" entre os Estados Unidos e Israel, evocou o antissemitismo e o Holocausto, cuja negação considerou odiosa. Mas, de um mesmo fôlego, estabeleceu uma equivalência moral - anátema para muitos israelenses - entre os seus padecimentos e os de seus vizinhos.

Obama cruzou uma fronteira ao consignar que os palestinos não apenas enfrentam "as humilhações diárias - grandes e pequenas - que vêm com a ocupação", mas "há mais de 60 anos têm suportado a dor do deslocamento", uma situação "intolerável". Cruzou outra quando, ao condenar a futilidade da violência palestina, lembrou que só pela via pacífica os negros americanos conseguiram plenos direitos - mais uma analogia amarga para Israel. Cruzou uma terceira ao reconhecer que o Hamas tem apoio entre os palestinos e ao se dirigir aos seus líderes, deles cobrando responsabilidade. Por fim, depois de ressaltar que "os Estados Unidos não aceitam a legitimidade da continuidade dos assentamentos israelenses" na Cisjordânia e de reiterar que a fórmula dos dois Estados é a única que poderá satisfazer a duas aspirações igualmente fundadas, cruzou a última fronteira ao falar duas vezes em "Palestina", como uma realidade presente. Incidentalmente, em momento algum ele pronunciou a palavra terrorismo.
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