Livros

'Leite derramado' ou Festa na Senzala

Lançado no final de março, o romance "Leite derramado" (Companhia das Letras), de Chico Buarque, ganhou generoso espaço na imprensa - inclusive nas páginas do Prosa & Verso - e também conquistou os leitores, como comprova sua boa posição na lista dos mais vendidos há algumas semanas. Obviamente, como qualquer obra, o novo livro de Chico não é uma unanimidade. Às vésperas da abertura da 7a. Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), que começa dia 1 de julho e da qual Chico é um dos principais nomes, o escritor Marcelo Mirisola enviou para o Prosa Online sua visão sobre o romance. Ele conta que no início estava gostando tanto do livro que até espantou seus amigos, conhecedores da notória (e assumida) vocação do autor de "Joana a contragosto" (Record) para a polêmica, para ser do contra. Porém, a felicidade durou pouco. A seguir, "Leite derramado" por Mirisola (foto de Gustavo Stephan/24-06-2004)

Não sou de grifar, nem de fazer anotações em livros, acho um despudor, uma invasão nas intimidades de quem o escreveu. E sobretudo uma interrupção desnecessária na leitura. Costumo levar as melhores passagens como se fossem sonho, sobressaltos, afagos. Depende do autor. De uns apanhamos, de outros somos cúmplices. Cioran sempre me levou a um nocaute histérico. Tem autores que estimulam a libido, outros a demência, Bataille faz essas duas coisas ao mesmo tempo, e ainda ri da nossa cara. O afago era o caminho que o novo livro de Chico Buarque apontava. O auge dessa carícia se dá quando Matilde, ou uma das muitas Matildes inventadas pelo autor, respira sobre o peito (ou as memórias) de Eulálio d’Assumpção Palumba. Nesse momento, as ondas se espraiam numa Copacabana do início do século XX e retribuem — em sincronia com a respiração da mulher amada — o vaivém das ondas e o movimento das palavras. Alta literatura, a meu ver. Como não grifei esse trecho, provavelmente reproduzo a imagem com falhas, mas é esse rumor que levarei comigo daqui a vinte, trinta anos; da mesma forma que, por exemplo, carrego o início de “Trópico de Câncer”. O narrador de Miller revira com uma espátula a vulva de uma mulher que o preteriu ( acho que foi isso...); ele fala em são bernardos, carneiros e outros bichos que sairiam das entranhas daquela infeliz e entrariam para sempre nessa confusão maravilhosa — pelo menos comigo funciona assim — que é a lembrança de um livro não grifado. Eu estava realmente festejando o “Leite derramado” do Chico, e já ensaiava um mea-culpa, embora não fosse o caso porque continuo achando que seus livros anteriores são limitadíssimos. Um livro que afaga, eu dizia pros meus amigos incrédulos.

Sim, até o momento em que Chico Buarque deixa de ser poeta e encasqueta com desdobramentos, enredos, nevoas supérfluas num livro cujo próprio narrador — um habitante da confusão por excelência — prescinde disso. Nessa hora fica claro o pavonear; Chico Buarque faz reluzir falsos brilhantes para o delírio das plateias embasbacadas. O show tem que continuar. E aí o que era sugestão e entrelinhas se transforma numa saga de minissérie da Globo; o livro, enfim, se desenvolve numa sucessão de chavões e lugares-comuns. Antes disso, relevei a precária abertura dos capítulos, e cheguei a dar um crédito ao autor por acreditar sinceramente que as conexões estabelecidas entre o velho decrépito largado no hospital e suas lembranças eram um gancho capenga, porém um mal menor. Insisti no talento de Chico Buarque, e dei de ombros para a obsessiva pesquisa que, em certos momentos, toma o lugar da própria criação — impressionante, aliás, essa ânsia por “pesquisa” e “firma reconhecida” na literatura atual. Quebrei a cara.

Penso que, para se escrever um bom livro de ficção, o sujeito não precisa ser necessariamente um documentarista nem um repórter, tampouco carece de memória privilegiada, basta que tenha liberdade e disponha de um pouco de imaginação e “cojones”. Tudo bem, pensava comigo mesmo, ele está fazendo a lição de casa... são os instrumentos de que dispõe. O leitor desavisado não vai reparar, inclusive valorizará “a riqueza do cenário”. Parece que ninguém jamais leu um parágrafo de Proust no Brasil, ah, meu Deus, só mesmo um pentelho como eu para se preocupar com esse negócio de “conexões”, “talento”, “imaginação”. Voltando aos escombros. A intenção de Chico Buarque era contar a história do Brasil nos últimos 200 anos. Vamos lá. O patriarca, pai do herói buarquiano, morre de bala de corno. Matilde, a mulher das lembranças e encantos do velho decrépito narrador, vira a louca do hospício, a desaparecida, a suposta adúltera (do pai e do filho) e eventual suicida entre outras Matildes ensejadas. O neto, mulato supostamente educado para redimir a família tradicional, se transforma num comunista; e sua mulher, uma guerrilheira anônima — vejam só — morre ao dar à luz, nos porões da ditadura, o bisneto ou tataraneto, tanto faz, transforma-se num enfadonho traficantezinho pós-moderno com direito a namorada junkie a bordo de uma Pajero (ou seria um Land Rover?).

Creio , em suma, que é desnecessário falar dos outros “desdobramentos”. Basta dizer que, nesse vaivém de memórias ululantes, o livro se “sustenta” e a gente finge que acredita que aquilo que poderia ter sido um enredo de escola de samba, é o novo acontecimento literário das últimas décadas no Brasil, quiçá dos últimos 200 anos de história do Brasil. Um “tempero”, continuamos falando do Brasil afinal de contas, que acaba avinagrando, porque o país apodrecerá de qualquer maneira e o destino de cada personagem foi — desde a primeira página — preguiçosamente traçado (o chalé de Copacabana dá lugar a um prédio Art-Déco, ah ... nem acreditei quando Chico Buarque carregou em tons dramáticos nessa hora) para agradar distintas plateias, desde as madames da Casa do Saber até chegar ao cemitério das ilusões premiadas, digo USP, e tudo o que era poesia, e tudo o que era Chico Buarque veste fraque e cartola e se desfaz numa metáfora enviesada e besta daquilo que o autor nos prometia no início do livro. O avesso do avesso no pior sentido: afinal a aristocracia dos olhos azuis-turquesa acabará prevalecendo em detrimento da literatura que o Chico — eita! — conseguiu desperdiçar. Dois problemas ainda saltam aos olhos:

1. A aula de estilo que Chico Buarque impõe aos bugres é um fricote que não tem necessariamente vínculos com a boa literatura. Eu seria muito cruel se dissesse que Chico Buarque é um autor esforçado. Leiam Edward Bunker.

2. O Brasil inteiro, de uns anos para cá, desde “Estorvo”, parece que foi obrigado a acompanhar o aprendizado literário de sinhozinho. Só posso chegar a uma conclusão: somos os Balbinos dessa história, o negrinho que catava mangas e oferecia-se aos delírios de sodomia de Eulálio d’Assumpção, herói do Chico — num tempo em que ninguém tinha maldade e os cavalos só falavam francês.

“Leite derramado”, quase esqueço de dizer, é muito engraçado. O rebenque florentino (ou genovês, sei lá, não grifei) passado de geração em geração continua cantando no lombo da criadagem. Uma pena que o Chico tenha novamente enterrado a si mesmo para — dessa vez — tentar contar a história do Brasil num livro caricatural e auto-referente. Agora o leite é derramado. Agora é festa na senzala. (Marcelo Mirisola)

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