Crônica

Dois solavancos e um tiroteio

Depois do Aldir Blanc, por causa de uma única canção, Fábio Júnior se tornou um dos maiores letristas da MPB

Marcelo Mirisola*
Os últimos quinze dias foram complicados para mim. Não seria exagero dizer que voltei de uma montanha-russa. Contabilizadas as indignações e as injustiças de praxe, e descontada a queda vertiginosa de cabelos na base do meu brilhante cocuruto, posso tranquilamente dizer que ainda estou sob o impacto de dois solavancos, e um tiroteio. Os três acontecimentos são complementares. O primeiro foi o infarto do meu pai, o segundo foi a notícia de que assaltaram o sítio do Fábio Jr. E, por último, tenho que dizer que escapei ileso e feliz da vida do tiroteio na Ladeira dos Tabajaras, uma vez que me entrincheirei na Adega Pérola, e resolvi adotar o ponto de vista da bala perdida – sem me esforçar muito poderia chamar isso de “o melhor complemento”.

O velho ficou dois dias na UTI, quase que bate com o rabo na cerca. Teve de parar de fumar, e agora me garantiu que vai dar um tempo nos cupins mal passados e nas picanhas sangrentas. A conferir. Bem, e o Fábio Jr? – perguntariam os mais céticos. O que o assalto no sítio do Fábio Jr. tem a ver com as calças? Tudo. O Fábio Jr – a meu ver – continua sendo, depois do Aldir Blanc e por causa de uma única canção, um dos maiores letristas da Música Popular Brasileira. Além de ser um ótimo ator, vale lembrar.

"Em sendo assim” – como diria meu saudoso professor de economia, dr. Euzébio Rocha – eu peço licença aos leitores do Congresso em Foco, e republico um texto que escrevi em homenagem ao Fábio Jr. e ao meu Pai. Esse texto, aliás, é um dos meus preferidos e faz parte do esgotadíssimo Proibidão (ed. Demônio Negro).

Aqui vai:

PAI

Pai, pode ser que daqui a algum tempo, haja tempo pra gente ser mais, muito mais que dois grandes amigos... pai e filho talvez...

Essa linda canção do Fábio Jr.me fez pensar no seguinte: nunca olhei nos olhos do meu pai. De uma certa forma sempre mantivemos uma distância engenhosa um do outro. Mas isso não quer dizer que fôssemos indiferentes. Só que ele tinha as preferências dele,e eu as minhas. Como se nossas afinidades – o jeito como organizávamos as idéias na cabeça, a antecipação das tragédias, a fantasia que chegava sempre (tanto nele como em mim) antes da realidade, o gosto pelas viagens de carro noturnas e o sorvete de nozes e, sobretudo,a mania de acreditar nas próprias fraudes ou falar de uma coisa para inventar outra,enfim,como se nossas afinidades não tivessem nada a ver conosco. Não, diferente do Pai do Fábio Jr., o meu pai nunca (em tempo e lugar nenhum) jamais seria meu grande amigo, apenas um cara que cometia os mesmos erros e as mesmas besteiras que eu havia de cometer vida afora; a gente sempre se repetiu,tanto que ele podia ser perfeitamente meu filho, e se fosse assim, eu ia agir da mesma forma que ele age e agiu a vida inteira comigo,isto é, nunca olharia nos meus olhos.

Pai, pode ser que daí você sinta qualquer coisa entre esses vinte ou trinta, longos anos em busca de paz...

Difícil aceitar que a vida de quem amamos tenha sido jogada fora. Porque uma coisa é ponto pacífico: há amor, claro que sim.
Na verdade, tememos pelo nosso destino. Pelo tempo que não é tão longo assim, e que passa rápido demais, e se há algo nessa história que prova que,apesar da distancia entre uma pessoa e outra, o amor existe, e que não é o tempo que vôa, bem, esse “algo” é a busca obstinada pelo encontro (ou pela paz); daí o desejo ou a súplica de que em algum instante – tanto faz se for Pai ou filho ou a mulher amada, – alguém venha a renascer: Pai, pode crer que eu estou bem, eu vou indo, estou tentando, vivendo e pedindo, com loucura pra você renascer... enfim, a gente pede “com loucura” para que alguém renasça a qualquer custo,mesmo que o tenhamos matado no meio do caminho, a gente pede com loucura para ele (ela) voltar, mas esse alguém não vai voltar, não. Sabem por quê?

Pai, eu não faço questão de ser tudo. Só não quero e não vou ficar mudo, pra falar de amor pra você...

Porque para o amor sempre vai ser tarde demais. Ah, meu Deus! Por que tem de ser assim? Por que quando adquirimos o grito apenas o deserto nos ouve? Por que, como diria meu amigo e poeta Marcelo Montenegro, temos sempre que “dinamitar a ponte que atravessamos”?

Montenegro, aliás – e não por acaso – é fã dessa canção.

Ah, pai, senta aqui que o jantar está na mesa, fala um pouco, tua voz está tão presa, me ensina esse jogo da vida, onde a vida só paga pra ver...

Ah, pai, agora que é tarde demais, o jantar está na mesa, deixa eu lhe servir um drinque, me conta daquela noite que flagrei você e a mãe combatendo sob uma luz prateada, foi tão bonito... eu nunca consegui saber o que de fato estava acontecendo, não sei se foi sonho ou realidade, mas me conta, Pai, agora que é tarde demais, me conta porque a minha voz está tão presa... tão presa como a sua voz: me perdoa essa insegurança, é que eu não sou mais aquela criança que um dia morrendo de medo nos teus braços você fez segredo...

Tão presa. Ah, Pai, minha voz tão presa, igual a sua, nos seus passos você foi mais eu.

Pai, eu cresci e não houve outro jeito, quero só recostar no seu peito pra pedir pra você ir lá em casa e brincar de vovô com meu filho no tapete da sala de estar...

Não houve outro jeito, Pai. O que eu faço agora que meu filho cresceu? Se não tenho você mais comigo? Ah, e agora que meu filho me olha nos olhos e eu, envergonhado, vejo você? Onde ponho você nessa estante? No lugar do herói ou do bandido?

*Considerado uma das grandes relevações da literatura brasileira dos anos 1990, formou-se em Direito, mas jamais exerceu a profissão. É conhecido pelo estilo inovador e pela ousadia, e em muitos casos virulência, com que se insurge contra o status quo e as panelinhas do mundo literário. É autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô e O azul do filho morto (os três pela Editora 34) e Joana a contragosto (Record), entre outros.

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