Opinião

O retrocesso do presidente

Editorial do Estadão
Mais de uma vez o presidente Lula comentou que a crise lhe faz bem: renovou o seu espírito de luta e deu-lhe uma agenda de que se ocupar, quebrando a rotina de um mandato que já não o confrontaria com grandes desafios. "É uma boa provocação", disse ao jornalista americano Fareed Zakaria, numa entrevista para a rede CNN, gravada em Washington há duas semanas, depois de seu encontro com o presidente Barack Obama, e levada ao ar domingo último. A emissão coincidiu com uma certa marola na imprensa e nos sites jornalísticos dos EUA por conta de sua tirada, dias antes, sobre a responsabilidade pela crise de "gente branca, de olhos azuis", diante de um constrangido Gordon Brown, o primeiro-ministro inglês, de passagem por Brasília.

De fato, a crise tonifica o presidente e o torna ainda mais loquaz do que de hábito, na expectativa de que a sua voz será uma das mais ouvidas na conferência de líderes dos países do G-20, depois de amanhã, em Londres. Em fase de aquecimento, nesses dias de intenso tráfego aéreo de chefes de governo, ele esteve sábado em Viña del Mar, no Chile, para o encerramento da Cúpula de Governos Progressistas, e chegou ontem a Doha, no Catar, para o encontro entre governantes árabes e sul-americanos. Mas, conquanto estimule o seu estrelismo, a crise não tem sido boa conselheira para Lula. Seja pelas ideias que desenvolve, seja pelo histrionismo em que as acondiciona, além da soberba que o leva a dar conselhos públicos a Obama ("ele não tem que se preocupar tanto com a guerra do Iraque") e a se gabar de que teria lhe dito que "não tem o direito de cometer erros" - na entrevista à CNN.

Nessa oportunidade, por sinal, ele não mediu palavras para se autovalorizar como uma figura única entre todas as demais que estarão no palco do G-20. Com um quê de exibicionismo, por paradoxal que pareça, invocou a penúria de suas origens, descrevendo-a com crueza de detalhes, e o ano e meio em que esteve desempregado para afirmar que conhece o mundo do trabalho "mais do que qualquer um". A admiração que ele merece por ter superado as adversidades já de todos conhecidas fica arranhada pelo espetáculo confrangedor da jactância e da exploração da própria biografia para revestir de uma autoridade incontrastável - de todo descabida - a sua pregação afinal esquemática sobre as causas e as saídas para a crise.

Quando culpa por ela os países desenvolvidos - "vocês têm mais responsabilidade do que nós, pois sempre as locomotivas têm mais responsabilidades do que os vagões", disse em Viña del Mar, dirigindo-se a Gordon Brown e ao vice-presidente americano, Joseph Biden -, desconsidera o fato elementar de que as locomotivas também foram responsáveis por conduzir o mundo a um inédito período de prosperidade, do qual o Brasil, sob seu governo, foi um dos maiores beneficiados. E faz uma confusão monumental quando apresenta a sua receita para revitalizar a economia. Ela se resume a duas palavras a que parece atribuir poderes mágicos: "Estado forte." Não há dúvida de que a falta de regulação foi o fator singular mais decisivo do colapso de um sistema financeiro entregue à ganância desenfreada, onipotência e irresponsabilidade. Não menos evidente é o papel do Estado (e, por extensão, das instituições multilaterais) na reconstrução das estruturas falidas, para destravar os fluxos de crédito e do comércio mundial.
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