Crônica

Qual é a música?

Marcelo Mirisola*
Continuo – depois de quase um quarto de século – achando o Silvio Santos melhor que os Titãs. Muito melhor. Toda a contestação, todas as privadas vomitadas e a “violência” primordial do grupo não resistiram a um “Qual é a Música?” Tá tudo documentado no filme do Branco Mello, "Titãs – a vida até parece uma festa".


O filme é muito bom. Tem um roteiro inteligente e direto, sem enrolação. Até as imagens precárias e mal iluminadas dos bastidores e porões reforçam a narrativa-colagem, Branco Mello acertou em cheio. Porém, acertou no alvo errado. O problema é que eu era um adolescente nos oitenta, e aquilo foi uma merda para mim.

Explico. Digamos que as imagens captadas por Branco Mello não se prestaram apenas para reforçar meus preconceitos com relação àquela época, mas sobretudo foram úteis para reafirmar minha convicção de que a adolescência é o período mais patético da nossa existência, e de que o Silvio Santos realmente é um gênio. Ta lá no filme. O Homem do Baú encaçapou os garotos e seria capaz de, sei lá, encaçapar um Andy Warhol em quatro tacadas se quisesse. Nem os Titãs, nem os culturetes daquela época – e nem as bichinhas culturais ilustradas de agora – jamais aceitariam e/ou compreenderiam um negócio desses. É muita areia pro caminhãozinho tropicalista deles. Embora alguns tenham se esforçado. Há pouco tempo, a consciência ilustrada começou a pesar terrivelmente e, num esforço sobre-humano, os vagalumes e pirilampos dos segundos cadernos resolveram reciclar Odair José e outros lixos transformando-os em ídolos “cults”. Mas esse é outro assunto. Não quero me perder em digressões.

Voltando ao filme. Os garotos do Titãs pagaram pau pro Silvio Santos, e o constrangimento deles era visível. Sabem por quê? Porque quem tripudiava do cabaço e subvertia a “subversão” deles era o dono da festa. O Homem do Baú foi quem, ainda nos cueiros, civilizou os “bichos escrotos”. Viraram franguinhos de granja eletrônica.

Os olhares “subversivos” que Nando Reis e Paulo Miklos trocam no programa “Qual é a música?” resumem não apenas o espírito rendido do rock and roll brasuca, mas a perda de tempo que foi a década de oitenta aqui em nossas plagas. Pensando bem – com exceção do Cazuza – a Aids matou pouco e foi a trilha sonora merecida desses mauricinhos que sempre usaram Jontex para fazer rock and roll, digo, para se proteger e garantir o churrasquinho no condomínio fechado, enfim, para zelar pelo conforto de suas proles caretas e respectivas carreiras bem-sucedidas. Qual é a música?

A propósito: é engraçado como o filme tenta mas não consegue esconder as imagens familiares, o aconchego dos lares, os cachecóis e fondues de uma Campos do Jordão inconfessada e latente.

Seguinte. Em 1983, eu tinha 17 anos e me recusava a participar da minha própria adolescência. Não tava nem aí pros meus hormônios, e acabava – confesso que com uma certa displicência – resolvendo tudo no banheiro, sozinho. Era um moleque comum, revoltado e safo, sobretudo me recusava a pagar mais micos além daqueles que era obrigado a pagar pela própria natureza.

Estudava no Colégio Objetivo. E, ao contrário dos Titãs, mauricinhos do Colégio Equipe, nunca tive problemas em querer disfarçar minha riqueza material.

Vou contar uma historinha. Aconteceu um ano antes,1982, depois das férias de julho: “lembro como se fosse hoje” – primeiro dia de aula. Uma cambada de inúteis e punheteiros (eu incluído) reuniam-se no pátio à espera de mais um semestre a ser jogado na lata do lixo. Enfado, tédio, frio. Sete horas da manhã. De repente, como se fosse um íncubo surgido na bruma paulistana daquele frio do capeta, aparece um punk, com todas as tachinhas, arreios e badulaques a que tinha direito.

Cabelo verde espetado, corte moicano. Vejam bem. Em 1984, o Fiat 147 era um carro moderno, e os garotos – ainda – eram “iniciados” na Tia Olga. Havia pouco mais de dez anos que Roberto Carlos descia a Rua Augusta a 120km por hora. A Rita Lee era gostosa, e o Caetano... um gênio. Como é que eu poderia chamar esse fiasco? Bem, como sou filhote do mesmo, vou chamar de “tempos idos”.

O garoto punk em questão era o Eduardinho Suplicy, filho da Marta. A sexóloga que escandalizava a classe média bundona falando putaria na TV Mulher.

Senhoras e Senhores! Respeitável Público! Eu acompanhei o nascimento e a estreia daquilo que, hoje, as revistas de fofoca chamam de “Supla”. Ele era meu colega de classe que voltava das férias completamente pateta e ridículo. O engraçado é que ninguém reagiu. E essa falta de reação – bom dizer – não tinha nada a ver com tolerar ou deixar de tolerar diferenças, mas com apatia, imobilidade. Sinal dos tempos. Ninguém apontou, nem ensaiou um linchamento. Ao contrário, Supla passou a ser respeitado e cantou de galo até o final daquele ano modorrento. E sem perceber, é claro, anunciava que o atrito acabara e que o politicamente correto, a liquidação das paixões e das ideologias, as calças & alminhas arriadas e a babaquice generalizada viriam imperar no quarto de século seguinte.

Se Supla fosse filho da Margaret Thatcher não faria a menor diferença.

Para comprovar o que digo, basta ir hoje à Rua Augusta. Aquilo lá virou um zoológico de íncubos. São os filhos do Supla. Um lugar, a ex-rua Augusta, onde as almas penadas têm comprimento, peso e piercing na língua, a morte em vida, depois da meia-noite as alminhas sucumbem no frescor da carne mesmo, skatistas passam por cima de emos que se refestelam no rés-do-chão junto ao vômito de cobras albinas, todos eles (digo, “eles”, porque não há gênero sexual) se espremem e copulam a partir das axilas, a atmosfera é de claustrofobia e obsessão, e é aí que entram os carecas nazistas e uma infinidade de mutantes tatuados e esfoliados desde o couro cabeludo até o esfíncter. Nem o Zé do Caixão conceberia um final-de-picada assim. O problema é que não há mais bacias para tanta alma em liquidação. Os filhos do Supla ocuparam os espaços românticos de antanho. Qual é a música?

As putas sumiram, foram expurgadas. Dá uma tristeza danada subir e descer a Rua Augusta e constatar que a festa das primas acabou.

Nelson Rodrigues quebraria a cara com o Supla. Uma vez, instado a dar um conselho aos jovens, o dramaturgo disse: “Envelheçam”. Supla, o filhote da Marta Suplicy envelheceu, e continua com os mesmos 16 anos e com o mesmo penteado ridículo daquele agosto de 1984. E eu fui cometer a besteira de acreditar em Nelson Rodrigues. Também acreditei em George Orwell, e li tanto, e acreditei em tantos outros, pra quê?

Nem aprender a namorar, eu aprendi. E quando eu digo que o Arnaldo Antunes sempre foi um picareta, eu continuo – reconheço – o mesmo chato de vinte e tantos anos atrás: ele nunca me enganou. Por Deus! Posso até ser um xarope, mas não posso estar completamente errado! Se fosse o caso, eu deveria estar arrependido de não participar dos meus 15, 16, 17 anos. Não me arrependo, não. Nem fudendo. Ora, eu continuo achando o Silvio Santos um cara bem mais punk que o Eduardinho Suplicy, o João Gordo (esse virou papai Gelol, vendedor de picolé) e os Titãs juntos.

E mais. Depois de assistir “Titãs – a vida até parece uma festa”, cheguei a uma conclusão: os anos oitenta não existiram, e eu realmente fiz muito bem em jogar minha adolescência na lata do lixo. Sinceramente, ainda hoje, não consigo ver coisa melhor para um garoto fazer nessa fase da vida. O ideal seria o congelamento até os trinta anos.

E se eu fui um punheteiro alheio naqueles 80’s, e digno de pena, hoje posso dizer que é a mesma coisa que sinto pelo Supla, e pelos velhinhos remanescentes dos Titãs: pena. O cavanhaque grisalho do Branco Mello é a coisa mais triste e honesta do melhor álbum de todos os tempos da última semana.

Como é que uma banda de rock and roll pode inspirar aconchego e bem-querer?

De qualquer forma, acho interessante e até didático o filme do Branco Mello. Vai servir para os adolescentes de hoje (os que sobraram) conferirem o quão canastrões e bobocas eram os adolescentes da geração anterior. No mínimo, isso pode dar uma medida justa do que acontecerá com eles num futuro próximo. Eu recomendo. Vejam o filme, mesmo porque o acaso não vai proteger ninguém da distração, e nem do próprio ridículo.
*Marcelo Mirisola, 42, é paulistano, autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô, O azul do filho morto (os três pela Editora 34), Joana a contragosto (Record), entre outros.

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