Crônica

Terapia do Amor

Marcelo Mirisola*
Depois do desabamento da Igreja da bispa Sônia, recebi inúmeros emails lembrando-me de uma crônica cujo título é “Terapia do Amor”. Essa crônica faz parte do esgotadíssimo “Proibidão” – nem eu tenho um exemplar. Em princípio, achei de um tremendo mau gosto associar a tragédia ao meu texto. Mesmo porque “Terapia do Amor” trata de outros desabamentos. Mas pensei bem e cheguei à conclusão de que, apesar do mau gosto e da aparente “coincidência”, a ficção não tem – sob hipótese alguma – que dar satisfações à realidade. E ponto final. Resolvi, portanto, dar uma nova oportunidade à “Terapia do Amor”, agora aqui no Congresso em Foco. Também fiz uns ajustes.

Divirtam-se.

Em janeiro de 1990, conheci Arlindo Brecão. Eu era um ajudante de cozinha em ascendência, e ele marido da cabeleireira. Naquele ano consegui uma vaga de chapeiro no Marambaia, um hotel três estrelas localizado na praia de Cabeçudas, em Santa Catarina.

Da cozinha do hotel eu contemplava os molhes do Porto de Itajaí. Naquela época eu era um peão metido a besta e, às vezes, era acometido por uns achaques etruscos. Lia muito Pavese, Vitorini, Lampedusa, mas estava deslumbrado mesmo com a prosa de Eugênio Montale.

Quando um poeta dá para escrever prosa, sai de baixo. Aqui, em terras brasucas, temos o exemplo de Manuel Bandeira. Pois bem, o italiano, autor de “A borboleta de Dinard” vivia falando em “molhes, asas franjadas e silvos roucos de sereias”, enfim, era um desabitado – feito eu na minha cozinha.

Alaíde, mulher do Brecão, trabalhava no salão de beleza do hotel. Foi o Brecão quem me alugou um quartinho nos fundos do sobrado onde moravam ele, a empenhada Alaíde, e mais um casal de filhos pequenos.

Um dado. Sempre fui um mentiroso, mas quem me ensinou a ser um “profissional do ramo” foi o Brecão. Tenho essa dívida com ele. Aliás,o sacana do Brecão também têm várias dívidas comigo.

Nas nossas folgas, digo minha folga e de Alaíde, porque Brecão era um vagabundo rematado – e vivia apenas em função de cafetinar a mulher – saíamos os três para a night. Naquele começo dos noventa, Collor confiscou a grana de todo mundo. Se não me engano, foi no mesmo ano em que os irmãos Leandro & Leonardo estouraram nas paradas de sucesso com Talismã: a canção que a doce Alaíde escolheu para embalar nossas prateadas noites... Tudo isso – claro – com o consentimento tácito do Brecão.

De lá para cá voaram 17 anos sobre nossos chifres.

Tive meus momentos de reconhecimento; em meados da chamada “década grunge” fui Chef de Cozinha do Caesar Park de Ipanema. Tempos idos. Hoje virei uma espécie de folclore de mim mesmo, perdi tudo na putaria e na cachaça: ninguém me leva a sério nem as minhas receitas; meu Ossobuco à Nelson Piquet é um prato desprezado, motivo de piada nos hotéis-escolas e cursos profissionalizantes do Sesc e do Senac. Também foi no final daquela famigerada década que ocorreu a invasão dos sushimans nas cozinhas do eixo Rio-São Paulo, creio que esses caras e suas malditas massinhas de peixe coloridas foram o prenúncio do meu malogro. Para mim, eles não passam de uns palhaços vestidos de samurai, nada mais.

Às vezes sinto saudades dos tempos em que eu era um chapeirinho sonhador sem dinheiro no bolso e sem parentes importantes, vindo do interior gelado de São Miguel do Oeste, quase divisa com a Argentina. Saudades da Alaíde, e vá lá, saudades do Brecão.

Bem, para resumir: não estou completamente na merda, uma vez que consegui uma indenização trabalhista por conta de um patético acidente ocorrido no Circo do Cachacinha. Sou aposentado por invalidez, mas a minha história com Cachacinha, ou melhor, a história de Alambique & Cachacinha, é outra história.

O que está pegando agora é a solidão. Por isso resolvi conhecer a Terapia do Amor da Igreja Universal do Reino do Edir, digo, Universal do Reino de Deus.

Todos os sábados – desde o Templo Maior na Av.João Dias no bairro de Santo Amaro, em São Paulo, passando pela Igreja em Del Castilho,na zona norte carioca, até o mais remoto e insuspeito templo nos cafundós da África Negra – todos os sábados, enfim, nos quatro cantos do mundo, o pastor Edir promove um encontro de casais em busca de um amor verdadeiramente abençoado por Cristo.

Fiz uns cálculos: eu estava sozinho, dando bobeira no boteco do cearense. Não queria encarar mais uma tarde modorrenta na companhia de bebuns tão modorrentos quanto... então perguntei pro Djalminha (que é o sócio do cearense) se por acaso ele não sabia onde se encontrava
o verdadeiro amor.

Djalminha olhou em volta, consultou um torresmo igualmente abandonado na estufa e, cientificamente, me revelou que os inferninhos da rua Augusta só iam abrir depois das nove da noite. Isso posto e diante das estridentes evidências, resolvi pedir um dinheiro emprestado para meu amigo Bactéria, que sorria maliciosamente no outro canto do balcão. Dali me mandei para o Templo Maior da Universal na Avenida João Dias, 1800, zona sul de São Paulo.


No caminho, fiz umas conjeturas a respeito da Igreja Universal do Reino do Edir. Bem, independente dos genocídios e fogueiras – seja para o vício ou para a virtude –, as religiões, ao longo do tempo e apesar dos pesares, sempre substituí­ram com eficácia uma parte doce e irrelevante do cérebro e, em troca (antes do advento das tevês por assinatura e dos chats da internet), até que devolviam um Deus ou qualquer bobagem que correspondesse à credulidade e ao baixo nível de quem nelas procurava socorro e desafogo. A redenção, no entanto, ficava para depois. Existia o céu para quem acreditava no inferno. O etéreo era levado a sério. Isso sem falar na sensualidade e na culpa que temperavam a coisa de acordo­ com o pecado e a volúpia da alminha corres­pondente. Um treco, em suma, que me dava tesão.

O bispo Edir acabou com isso.

Na Igreja do Edir a tesão é desperdiçada, e os demônios se oferecem seguidamente ao sacrifício nas arrastadas madrugadas da Tevê Record. Tenho dó. São uns pangarés. Não tem um diabão porreta capaz de mandar os pastores-meganhas para o quinto dos infernos. O que os segura? O que, afinal de contas, aquele Jesus mequetrefe oferece em troca?

Dinheiro? Margarina no café-da-manhã? Um décimo segundo lugar para o Rubinho Barrichello? Pra que é que serve a maldição nesse caso?

Gente desperdiçada. Jesus miojo.

Tudo bem que a Bíblia se presta a interpretações canhestras, mas o termo a que este livrinho foi reduzido pelos ­pastores-meganhas do Edir, antes de sinalizar ou sim­ples­men­te separar o céu do inferno, é algo – senão broxante – no mínimo constrangedor. E o pior, atinge de maneira tão vil­ o bolso e a inteligência dos incautos que, penso, o único meio de objetar ou pôr em xeque a lógica perversa desta picaretagem é comungar com o diabo, esse pobre coitado.

Jesus Cristo, aliás, tem sua parcela de culpa. Vejam só. Por que o filho de Deus, em vez das parábolas e da ginástica aeróbica do Pe. Marcelo, não usa qualquer outra forma menos corrupta e mais verossímil para se comunicar? Por que não au au... o latido?

A verdade é que as religiões – até as mais inofensivas (se é que isso é possível...) – já tiveram um certo pudor, pompa e circunstância para enganar os trouxas.

Bem, havia chegado à Igreja. Esses corredores de ônibus aqui em São Paulo – graças a Jesus! – são mesmo eficientes. Nem deu tempo de incluir os pagodeiros nas minhas pragas & blasfêmias.

Que Deus me proteja? Sei lá, só sei dizer que dei uma vacilada antes de entrar no Templo Maior da Universal do Reino de Deus, na Av.João Dias. Embora certo de que aquelas mulheres-urubus estavam mesmo a fim de arrumar jagunços, eu não sabia o que fazer diante da retaguarda delas: impossível deixar de olhar pros traseiros e resistir à tentação de adivinhar as curvas escondidas atrás das burkas compradas nas Lojas Americanas. A melhor coisa – decidi – era segurar minha onda, e afastar a tentação, pois estava na casa do Edir, digo, na casa de Jesus.

Assim procedi: entrei olhando para o chão, e segui a manada. Tipo tímido recém-convertido. Só na base do soslaio. Claro, aquilo me deu tesão, e imediatamente cometi a gafe de fazer o sinal da cruz.

Nesse instante, uma obreira que estava ao meu lado (decerto em busca de um soldado de Deus) fulminou-me com um olhar apocalíptico de reprovação. Se ela me dedasse, pensei, correria um risco muito sério de terminar meus trôpegos dias enchendo a cara no boteco do cearense sob os auspícios malignos do Bactéria... Oh Edir!, digo, oh Deus!, tudo menos isso. Então o pastor entrou.

Cazzo! Era o Brecão! Arlindo Brecão!

O sacana estava metido num terno risca de giz, muito bem disposto e queimado de sol, e com aquela cara de pau toda furada de espinhas: a mesma testa baixa e a antiga verruga peluda obstruía suas pálpebras de peixe podre. Oh, Deus! Era ele! Só podia ser o Brecão! Quando o sacana disse “boa tarde irmãos,boa tarde irmãs” gelei de constrangimento, e tive uma certeza: “se o Brecão me descobrir aqui vai zoar comigo”.

Afinal, eu sabia com quem estava lidando, e ele também me conhecia de outros carnavais.

Ainda bem que a Igreja estava cheia, e eu, como de costume, havia me aboletado no meu lugar por excelência, o fundão. Mas por Deus! O que o Brecão estava fazendo lá? Aquele cara era um imprestável, prevaricador, cafetão, estelionatário, etc e tal.

Numa ocasião, lembro, o flagraram bolinando um travesti atrás do biombo de depilações do salão da nossa querida Alaíde, macumbeiro da pior espécie, profanador de salões de beleza, racista, cachaceiro, sexista, gente boa, meu melhor amigo.

Aí começou a preleção. A primeira coisa que disse foi: “Jesus é Dez ...améeem?” O mesmo Arlindo Brecão das antigas, pensei. Em seguida toda a Igreja ecoou: “améeem”. Não é que povo confiava no Brecão?

O sacana engatou a primeira, a segunda, a terceira... e em cinco minutos tinha todo mundo preso, hipnotizado na sua lábia, dizia coisas do tipo:

A mulher se submete ao marido movida pelo Espírito do amor. Aí está o grande valor da mulher de Deus: ela se submete ao seu marido movida pelo Espírito do amor que há dentro dela, pois este amor não é seu, mas vem de Deus, para ser transferido aos demais, especialmente ao seu marido, que é parte do seu corpo.


O que teria acontecido com a pobre Alaíde? Quer dizer que, além de apanhar do Brecão, Alaíde ainda tinha de agüentar um “Deus” ou um “amor” que pouco se importava com ela (porque esse estrupício vinha de dentro dela mesma)? O que exatamente Brecão queria dizer com isso? Que as mulheres sem opções outras, portanto masoquistas pela própria natureza, não podiam sequer molhar as calcinhas?

Mas como alguém pode ser sádico e masoquista de si mesmo?

Brecão ia em frente :

Quando a mulher é de Deus e seu marido não é cristão, mesmo assim ela deve se submeter a ele, por amor, e não porque seja obrigada ou por estar escrito na Bíblia. Deve ser algo natural, que jorre do seu interior, como se fosse uma fonte de águas cristalinas.

Ah,sei... agora entendi tudo. Desde tempos idos, o Brecão estava ensaiando a própria redenção. Safo, queria garantir seu lote no céu. Era isso? Alaíde é que não soube fazer a diferença entre “cachaça” e “águas cristalinas”?

Sinceramente? O fdp estava me convencendo.

As mulheres da Igreja suspiravam. Brecão havia se transformado no Pastor J.J Josino ou Pastor P.C.C alguma outra coisa que o valha... não lembro. Teve mais!:


Seu marido pode ser uma grande pedra tentando impedir que a água venha a fluir; pode até ser uma pessoa possessa de espírito imundo, mas tudo isto não deve impedir que esta fonte venha a jorrar. Sua força fará fluir água por todos os lados, e acabará sobrepujando o peso daquela pedra.

Caros leitores, por acaso, lembram daquela obreira que há pouco me recriminara por conta do sinal da cruz? Pois bem, ela piscou para mim, aproximou-se e balbuciou essas palavras no meu ouvido:

– Você foi chamado por Deus.

Poxa! Eu?! Sim, me garantiu a obreira, e ao mesmo tempo abriu o fecho-éclair da minha calça, e encheu a mão com gosto.

Enquanto isso, Pr.Brecão pregava:

Se a mulher é de Deus e olha para o seu marido como se estivesse olhando para o Senhor Jesus, então ele acabará se transformando no marido cristão que ela tanto deseja. Muitas vezes, em vez de olharem para eles com o mesmo olhar de misericórdia e compaixão cristãs, só criticam o seu comportamento, além de fazerem cobranças a todo instante. Este procedimento os afasta cada vez mais da fé.

Claro que sim, claro, eu concordava com cada sílaba proferida pelo Pr. Brecão. Havia “recebido o chamado”, e a obreira pegava com fé (e com muita força, em movimentos lentos e sincopados) na minha espada santa.

Naquele trecho em que o Pr. Brecão falou que as mulheres só criticavam o comportamento dos homens, e faziam cobranças desnecessárias a todo instante, bem, tenho de confessar, foi uma verdadeira epifania para mim, pensei na Vange Leonel. E aí não agüentei: minha “fonte” jorrou na mão da obreira. E não fui só eu! As “fontes” da jagunçada jorravam aos borbotões pelos quatro cantos da Igreja. Jesus!

– Uma benção, irmão! Uma benção! – gritava a obreira possessa.


E o Pastor Brecão lá na frente, mandando ver: A mulher temente a Deus e submissa ao marido sabe aturar seus erros, porque tem consciência de que ele ainda não teve um encontro com o Senhor. Vai lutando através de orações e jejuns, e, sobretudo, manifesta um comportamento exemplar de mulher de Deus, especialmente dentro de sua casa.

Em seguida, pediu para que os ungidos dessem as mãos, e orou forte para que todo mal fosse banido da vida sentimental dos mesmos. “Hoje em dia, as pessoas se maquiam para não transparecer o que estão vivendo. Querem mostrar para sociedade algo que não é real. Na verdade, são infelizes”, disse o pastor Brecão.

Depois chamou à frente do altar todos que desejavam a “cura interior”. A obreira apocalíptica queria que eu fosse dar meu testemunho aos pés do Brecão. Agradeci a ela do fundo do meu coração sertanejo, e lhe disse que as palavras daquele homem sábio haviam me curado, graças a Jesus!. Garanti que na outra semana – tinha que evitar o Brecão a qualquer custo – daria meu testemunho, por Jesus! Enquanto isso, as outras obreiras distribuíam um algodão embebido de perfume entre os participantes, no qual todos levaram uma unção na direção do peito, e depois – é claro – fizeram a devida higiene.

Na pregação, Pr. Brecão destacou que a harmonia sentimental dependia da comunhão com Deus. Se o fdp falou, estava falado.

Arlindo Brecão também fez orações para os casais e os solteiros, abençoando a todos em Nome do Senhor Jesus. Em seguida, convidou o povo para a Vigília do Amor, que ia acontecer na próxima sexta-feira, às 23h. Disse que ele e Alaíde, sua fiel companheira, e mais 12 pastores com suas respectivas esposas, estariam orando pela vida sentimental dos participantes.

Terminou a reunião pedindo a Deus que levasse todos em segurança para suas casas. Amém, né?
PS1: As palavras (em itálico) do “Pastor Brecão” foram tiradas ipsis litteris do site
www.terapia.arcauniversal.com.br, da Igreja Universal do Reino de Deus, o resto do texto é ficção, qualquer semelhança com nomes ou pessoas ou acontecimentos reais – em nome de Jesus! – é mera coincidência.

PS2: Uma resenha corajosa de Sergio de Sá sobre "Animais em Extinção". Saiu no O Globo desse sábado (24.01.09). Recomendo (
confira) aos burocratas de botequim e aos criticos de conveniência.

*Marcelo Mirisola, 42, é paulistano, autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô, O azul do filho morto (os três pela Editora 34), Joana a contragosto (Record), entre outros.

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