Opinião

Cena impensável

Sérgio Fausto
Famílias inteiras pregadas num sono maldormido espremem-se em veículos espalhados num imenso estacionamento. Plena madrugada. Muitas vindas de longe: duas, três horas de viagem. São aproximadamente 3 mil pessoas, de todas as idades.


No descampado em frente, um hospital de campanha vai pouco a pouco se erguendo. Salas de exame e cirurgia separadas por lençóis de pano branco. Trabalho conduzido por um voluntário, Stan Brock, que comanda o Remote Area Medical Volunteer Corps, ONG que desde 1985 leva assistência médica gratuita para lugares e populações desassistidas, estejam onde estiverem. Ao nascer do sol, filas de pacientes se formam à entrada do acampamento improvisado.

Ao longo do dia, nas barracas, centenas de voluntários (médicos, dentistas, oftalmologistas e enfermeiras) desdobram-se em consultas, exames e cirurgias que vão de simples extrações de dentes a complexas retiradas de tumores. Para muitos pacientes é o primeiro atendimento médico em muitos anos. Uma mulher de 60 anos, que sofre de diabetes, diz ter feito a última mamografia 18 anos atrás. Levará 12 horas para ser atendida. Alguns não resistem em pé a tanto tempo de espera. Desmaios não são raros. A torrente humana entra e sai do acampamento médico por três dias seguidos.

Cena do Terceiro Mundo? Coisa nenhuma: cena americana, vista pelo olhar atento e sensível da jornalista Mary Otto, em reportagem publicada na edição de 9/11 do The Washington Post Magazine. Ela se repete há oito anos numa pequena localidade do sudoeste da Virgínia chamada Wise County. Segundo o U. S. Census Bureau, a proporção de pobres em Wise County chega a quase 20% da população, sete pontos porcentuais a mais do que no conjunto do país. A renda per capita é de cerca da metade da renda per capita americana. No entanto, a cena que ali se vê anualmente retrata - em tons mais dramáticos - uma realidade nacional.

Os pacientes atendidos no acampamento do Remote Area Medical Volunteer Corps - em sua maioria, pobres brancos americanos, trabalhadores e ex-trabalhadores de decadentes minas de carvão que um dia empregaram muita mão-de-obra naquela região - fazem parte do contingente de pessoas que não têm seguro-saúde nos EUA.

Imenso contingente, estimado em 47 milhões de pessoas, às quais se somam outros 25 milhões, considerados "insuficientemente segurados", gente cujo seguro mal dá para cobrir os tratamentos mais simples. Segundo um relatório do U. S. Census Bureau, de 2007, o número de sem-seguro-saúde nos EUA aumentou em 12 milhões de pessoas desde 1990 e o de insuficientemente segurados ampliou-se em nada menos que 60% desde 2003. O quadro deve piorar, com o crescimento do desemprego, que já está em 6,5%, a maior taxa desde 1992, e pode atingir, segundo analistas, mais de 9% ao longo de 2009, na esteira da crise financeira que agora faz vítimas em número crescente na economia real. Sem emprego, sem seguro-saúde.
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