Crônica

O Brasil visto da poltrona 25

Marcelo Mirisola*
Tenho duas lembranças do primário. As mãos da tia Maria José e o corpo retalhado de Tiradentes nos livros de história. Eu fazia uma confusão danada com as pessoas e os pedaços que representavam. Para piorar tinha uns profetas caolhos de um tal de Aleijadinho a me encarar com desconfiança. Bifes. Tia Maria José é que me protegia deles. Desde sempre aquelas cidades mineiras; São João Del-Rey, Congonhas do Campo, Ouro Preto, Mariana e os seus inconfidentes gritaram na minha imaginação. A palavra inconfidência foi a primeira coisa importante que aprendi – e que de fato guardei da época da escola. O resto foi selvageria, o Borba Gato na avenida Sto. Amaro e tempo perdido.

Algum dia, se oportunidade houvesse, eu sabia que ia conferir os “gritos” in loco. Viajei pelo interior de Minas Gerais nessa última semana. Quebrou meu galho. Uma vez que o Père-Lachaise e o túmulo de Jim Morrison não ficam atrás da igrejinha dos Cabrestos, e como eu estava mesmo dando bobeira às margens do São Francisco, resolvi que da Serra da Canastra (sem Lei Rouanet, nem ninguém para me pagar a conta) subiria no primeiro ônibus para Alfenas, e de lá seguiria para Três Corações. Oportunidade houve, portanto.

Quero dizer que a primeira etapa da viagem não tem nada a ver com os inconfidentes. Mas na próxima crônica eu chego lá. Prometo.

Da terra do Pelé para São Tomé das Letras é pertinho, coisa de 50 km. Quem olha da janela do ônibus logo associa São Tomé àquelas cidades da Palestina que bóiam em morros áridos, lugares que pairam sobre o abandono e sobre a crueldade do tempo e dos homens. No meu caso, esses lugares bordejaram desde sempre sobre minha própria insensatez; vale dizer, sobre o clarão dos lugares-comuns e sobre o deserto da minha ignorância. Bom – aliás – confrontar-se com a própria ignorância e com o pôr-do-sol visto da janela da poltrona 25, chega a ser bonito até.

De perto, entretanto, o lugar devia se chamar São Tomé dos Puxadinhos. Não me lembrou nem vagamente a porralouquice que decerto aconteceu naquelas plagas no começo dos anos 70 do século passado. Ah, eu era criança nos 70, e perdi o melhor da festa...

Naquela época eu me divertia vendo televisão. Hoje é o contrário: as televisões é que nos assistem, em todos os lugares, e no mesmo canal. Isso não tem graça. Vi galpões nesses lugares. Um monte deles: em todas as cidades que passei, desde a mais careta até a ex-esotérica São Tomé das Letras, uma infinidade de galpões pintados de verde-limão e roxo-sétimo-dia. O que aconteceu com o Brasil de Niemeyer? Dizem que o velho comunista casou-se recentemente e virou troféu reciclado de Fórmula 1. Parece que o Brasil não existe mais. O que existe é a ajambração; esta sim é perene porque se prolonga, irradia. Não só nos galpões, mas na política, nas artes, nos alto-falantes das camionetes, na roupa e na gíria de mano que a garotada de todas as quebradas – por absoluta falta de lastro e excesso de informação – foi meio que “obrigada” a adotar. Ferréz é o Clodovil e Mano Brown é a Coco Chanel do século XXI. O Brasil foi pichado. Executaram Jeca Tatu em praça pública, confundiram-no com Judas, o traidor.

E tem mais. Eu viajei por um Brasil que foi pichado física e metafisicamente. No primeiro caso, o emporcalhamento é ostensivamente tímido (leiam
Os muros do Colégio Santa Cruz). No segundo caso – muito pior – quem emporcalha é o colorido; como se o verde limão e o roxo-sétimo-dia conferissem uma espécie de poder à maçaroca que brotou dos escombros subliminares de um país que foi sem nunca ter sido. Funciona assim: o dono do supermercado ganha do concorrente e leva a paisagem na base do grito, como se não gritasse. Ganha na gordura, ganha na cor. Para não chamar pelo óbvio nome de urna funerária, vou chamar esses blocos de cimento e lajes sobrepostas de Brasil, novembro de 2008. Chinelo de dedo e bermudão. O Brasil que eu vi da janela do ônibus é um país rasurado até na ingenuidade não cumprida.

Em São Tomé das Letras, as lojinhas típicas que vendiam bonecos de ETs de durepox, os jipeiros playboys e a vertigem que senti o tempo inteiro, provavelmente resultado da pressão atmosférica e do “magnetismo” do lugar, me incomodaram um bocado (também). O dono na pousada-puxadinho foi categórico em afirmar que, na verdade, aquilo não era uma sensação, mas um sintoma. Mais precisamente de abdução não presumida. Isto é: o fato de estar bêbado o tempo inteiro sem tomar nenhum gole (coisa mais idiota) e sentir-se ameaçado por cores galopantes e galpões roxo-sétimo-dia não é algo tão incomum em São Tomé das Letras. Significava – segundo a interpretação do dono da pousada – que ETs usaram e abusaram da minha falta de condescendência e sobretudo dos meus critérios. Era o que me faltava, ainda bem que não tive diarréia.

Cansado de ser manipulado por ETs bregas, fui para a rodoviária de São Tomé das Letras, e peguei o primeiro ônibus em direção a qualquer lugar, que – no caso – atendia pelo simpático nome de Baependi. Havia chovido muito na noite anterior, e o ônibus da Viação C. encalhou perto de um vilarejo chamado Sobradinho. Para minha sorte, a arrumadeira da pousada estava no mesmo atoleiro, e me ofereceu um olhar lânguido e coxas roliças que me convidaram a acompanhá-la para a moita mais próxima. Mas essa história e nossos tórridos momentos de amor via Cruzília-Caxambu, e a viagem que fiz para São João Del-Rey – onde passei uma noite triste, e a parte que compreende a experiência de Mariana e Ouro Preto, ficam para a próxima crônica. Por ora, posso adiantar que na escadaria da Catedral de Mariana um profeta paraibano me pegou pelo braço, e confidenciou-me a visão que tivera ao me vir sair do negrume da igreja secular.

Em meio a pragas e danações cabeludíssimas, duas profecias me chamaram atenção: a primeira foi a revelação de que, até 2012, os brasileiros chorariam por três meses a morte de seu maior ídolo e cantor. Nada mau, pensei. Num futuro próximo estaríamos livres dos especiais de final de ano do Roberto Carlos. O profeta também me garantiu a queda de um cometa (ou seria asteróide?) na costa africana. Ele foi categórico ao afirmar o diâmetro desse objeto celeste incandescente – equivalia exatamente a um estádio do Maracanã. Das águas africanas uma onda gigante se levantaria e chegaria aqui no Brasil para engolir ¾ da nossa população que vive abaixo de mil metros de altitude, as cidades de João Pessoa e Fortaleza estariam irremediavelmente condenadas à submersão. Nada mau, pensei outra vez: quase toda a população brasileira dizimada em conseqüência da queda de um objeto celeste cujo diâmetro era idêntico ao do Estádio Mario Filho. Ou seja, futebol nos cornos do povo, fazia sentido. As outras profecias diziam respeito a quebra da bolsa de valores,uma epidemia de dengue violentíssima que mataria em três dias, miséria, fome, violência, enfim, nada diferente dos nossos apocalipses do dia-a-dia. Ao sair da Catedral de Mariana fiz o sinal da cruz, e agradeci pelo tempo que ameaçava abrir, depois de quase uma semana de chuva e mormaço. O que eu poderia fazer? Fui até a estação de trem, e comprei uma passagem para Ouro Preto. Um lindo passeio, eu recomendo.
*Marcelo Mirisola, 42, é paulistano, autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô, O azul do filho morto (os três pela Editora 34), Joana a contragosto (Record), entre outros.

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