Crônica

On The Road à parmegiana

Marcelo Mirisola*
Não existem lugares inusitados para quem escreve. Inusitado é procurar esses lugares, o itinerário. Por exemplo, no meio do caminho você pode – inopinadamente – perder a alma para um diabo sonolento numa praça de pedágio. Portanto, em vez de um percurso, um destino. Impossível não lembrar de Carol Dunlop e Julio Cortázar. O casal passou um mês na auto-estrada que liga Paris a Marselha. Um trajeto de poucas horas virou um livro divertido, onde o casal de autores registrou muito mais do que alguns quilômetros rodados.

Mas eu quero apenas uma crônica, não quero mais um livro. Apenas um texto, uma viagem que (de certo modo) não é nem uma viajada na maionese, e que poderia ser diferente das outras. Talvez – na falta de tempo e criatividade – eu até reproduzisse uma crônica que escrevi já faz uns bons meses para uma revista. Quando me pediram o insólito, o inusitado. Gostei da idéia. Assim, eu teria liberdade para escrever sobre uma fábrica de misses que existe na Venezuela, e nem de longe tocaria no nome de Hugo Chávez. Ia ser legal – na iminência de uma crise mundial sem precedentes, e do preço do petróleo caindo vertiginosamente – falar “in loco” de cirurgias plásticas, medidas de busto, quadris e cultura geral das candidatas. Aposto que elas teriam na ponta da língua as façanhas de Saint-Exupéry. A linda Juliana Alfoya, miss Maracaibo, me contaria do pouso forçado que o escritor e aviador – nos idos da década de trinta do século passado – fizera na Praia do Campeche, no lado sul da Ilha de Santa Catarina.

Ah, Juliana, que pena. Não rolou. O tempo da crônica é mais iminente que a quebra de Wall Street, e a história da miss Maracaibo que, junto com minha idéia genial, foi pro beleléu.

O Beleléu, aliás. Que fica perto da Chapada dos Veadeiros, em Goiás. Seria um destino batuta e místico al dente... não fosse a lembrança que me ocorreu de uma Praça de Pedágio localizada em Jaguariúna, perto de Campinas. E que não tem nada a ver com aquele pedágio onde o diabo me subtraiu a alma, isso aconteceu antes – uns vinte e dois anos antes.

O ano era 1986, eu estudava agronomia, e ia fechar um negócio com um corretor de café em Espírito Santo do Pinhal. Havíamos combinado de trocar os carros logo depois do almoço,e seguiríamos, ele no meu carro e eu no dele, até Jacutinga, cidade que disputava com Ibitinga, à época, o título de Capital Nacional dos Bordados. O problema é que a crônica está me pedindo um clima de Verão; portanto nada de malhas, e cachecóis. Esqueçamos as lãs,e a rivalidade entre Jacutinga e Ibitinga.

Bem, como eu dizia, em meados dos oitenta, eu tinha uma Ford F-1000, e a minha idéia era deixar a camionete com o tal corretor em Jacutinga, e seguir rumo a Pouso Alegre (MG). Esse era o negócio, e mais umas sacas de café, e uma grana na minha conta corrente. Bons tempos, e ainda me sobraria um Monza novinho em folha, vermelho.

Naquela época eu fazia altos negócios, e nem desconfiava que a minha vocação era contar mentiras. Não mudei muito. Apenas envelheci 22 anos, e continuo – digamos – seguindo a mesma vocação.

Mas o que eu ia fazer mesmo em Pouso Alegre? No final do dia, se não ocorresse nenhum sobressalto, finalmente encontraria Thomas Green Morton, o mago dos magos. Quem tem mais de trinta anos sabe quem é o cara. Rááááá.

Antes, porém, tenho de voltar à Praça de Pedágio, lá atrás, em Jaguariúna. Foi lá que aconteceu a primeira coisa inusitada da viagem. Vejam só. Além de ter decidido que ia conhecer o homem que dominava a técnica de manipulação dos 18 xacras, resolvi dar um cavalo-de-pau na camionete e trocar a cabine de pedágio três pela cabine quatro.

A tentação de escrever “como se tivesse sido puxado pra lá” é grande. Só depois de uns cinqüenta quilômetros, perto do trevo de Mogi Mirim, é que notei que o recibo do pedágio veio acompanhado de uma boca de batom. Pensei em fazer o retorno de Itapira, mas já era tarde – não podia voltar em razão do encontro marcado com o corretor em E. S. do Pinhal. Tentava lembrar o rosto da mocinha do pedágio, e não conseguia.

Almoçamos filés à parmegiana no Clube Recreativo. Imperdível: o leitor do Congresso em Foco que for a Espírito Santo do Pinhal não pode deixar de comer o filé à parmegiana no Clube Recreativo. Em 1986 era ótimo. O corretor era um cara engraçado porque tinha pressa, e manipulava os talheres à clef. Eu preferi pedir um manjar de coco de sobremesa.

Quando vi já estava dirigindo outra vez. Fazia muito calor, e tive que entrar nas estradas de Minas Gerais. Isso queria dizer buracos. A estrada que ligava Ouro Fino (aquela mesma do Menino da Porteira) a Pouso Alegre parecia um queijo suíço, foi a conclusão a que cheguei.

E esse tipo de “conclusão” era a única coisa que eu podia fazer em virtude do calor, e dos buracos – e isso me incomodava, e muito. Embora não soubesse, desde aquela época, eu já era um cara que, acima de tudo, prezava pelo estilo. Mentiroso, mas com estilo.

A garota do pedágio tinha cabelos compridos, e era morena, acho. Lá pelas tantas, cansado e intrigado com aquele recibo de pedágio borrado de batom, parei num posto de gasolina. Ainda lembro; segui para a lanchonete, e pedi a Coca-Cola mais gelada. Num arroubo de boa-vontade, ofereci um gole para a garota que estava encostada no balcão. Linda, loura de olhos negros. Uma garota meio hippie; vendia penduricalhos, e negociava uma carona até Pouso Alegre. Eu disse que sim, era meu caminho, e até fiz uma brincadeira sem graça com ela: “Deve ter sido um festão, mas Woodstock acabou faz uns dezesseis anos”.

Loura, olhos negros. Sorriu, abriu minha mão com muita delicadeza, e me deu uma semente de presente, acho que era de figo da índia,e disse: “guarda”.

Nesse instante, o balconista me chamou a atenção. Apontou para a bomba de gasolina, e disse que minha camionete obstruía a passagem de um caminhão-tanque. Nem havia notado a chegada do caminhão... a conversa com a moça me absorvera completamente. Mais um pouco e a pediria em casamento. Bem, fui até lá e resolvi o problema. Quando voltei, a hippie não estava mais na lanchonete. “Ué, cadê a moça?” “Que moça?”

“A hippie que estava aqui nesse balcão quando cheguei”.

“Hippie? Que hippie?”

Depois de uma discussão inútil, e depois de ele ter jurado de pés juntos que não havia ninguém naquele lugar, a não ser nós dois e o motorista do caminhão-tanque que chegara naquele momento, depois disso, e de eu ter perdido a semente que a garota havia colocado em minhas mãos (figo da índia?); enfim, depois desse aborrecimento, resolvi seguir viagem até Pouso Alegre, puto da vida e contrariado: “sacana, filho-da-puta de balconista, hippiezinha de merda”.

Era final de tarde quando cheguei na Chácara de Thomas G. Morton, o bruxo tinha mesmo um calombo na testa, e podava uma roseira. Estava muito ocupado com a tesoura de jardinagem, as mãos sujas de terra. Num gesto simpático, ofereceu o antebraço para me cumprimentar. Quase nem olhou para mim, apenas apontou-me a direção da cozinha com o queixo, e disse: “Vai até lá, elas estão preparando uma surpresa para você”.

*Marcelo Mirisola, 42, é paulistano, autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô, O azul do filho morto (os três pela Editora 34), Joana a contragosto (Record), entre outros.

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