Automobilismo

Perfeccionista em tudo

Maurício Gugelmin
Eu admirava a maneira como o Ayrton passava a manteiga no pão. Pegava a quantidade exata com a ponta da faca e depois espalhava uma camada igualzinha em toda a superfície do pão. Fazia aquilo sem pressa, como se estivesse decorando o pão de centeio. Depois cortava a fatia em pedaços simétricos e ia comendo os nacos como num ritual. Cansei de ver essa cena na época em que moramos juntos na casa que alugamos em Norwich, no norte da Inglaterra, e depois na casa dele em Esher, nos arredores de Londres.
Parece exagero, mas o homem tentava fazer tudo perfeito, do pão à bandeirada de chegada. Ele tinha para cada tarefa, desde a mais trivial até aquela que envolvia risco de vida, um sentido específico. Acho que foi o único sujeito que conheci que lia detalhadamente (às vezes até para discordar) toda e qualquer instrução, o modo de usar de tudo que lhe caía nas mãos. Só tomava um remédio depois de conferir a bula e de se certificar de que a posologia indicada batia com a recomendação do médico. A roupa do Ayrton só ia para a máquina depois de ele conhecer o tempo indicado para aquele tipo de tecido, a quantidade adequada de sabão, o tempo de centrifugar, enxaguar e... sei lá mais o quê. Era o tipo de pessoa que realmente agitava antes de usar. Eu tirava a roupa já seca da máquina e a considerava pronta para usar, mas o Becão pendurava tudo direitinho, para não amassar.
Nas coisas de pista ele também era superdetalhista. A gente passava horas revendo e estudando as corridas. Lembro que, às vésperas de eu embarcar para o Grande Prêmio de Macau de Fórmula 3, em 1985, Ayrton ficou repassando o teipe da corrida que ele havia ganhado lá, em 1983, me explicando curva por curva, metro por metro daquele circuito suicida, com incrível minúcia. Ele me dizia:
- Olha, aqui você tem que passar raspando o aerofólio traseiro na parede. Essa quinta curva a gente faz às cegas, não vê como ela termina, mas é pé na tábua e já se preparando para entrar à esquerda. Lembre-se, heinn... à esquerda - enfatizava com uma veemência de professor.
O cara me dizia aquilo como se estivesse pilotando. E até estava, porque ao explicar girava um volante imaginário nas mãos, soltava a mão direita, metia o pé esquerdo na embreagem como se fosse cambiar e saía com perfeição, imitando um som de motor cheio, na rotação máxima. Vimos aquele teipe uma dezena de vezes, ele sempre narrando tudo e todo aceso. Só parávamos quando eu caía de sono.
Na primeira volta dos treinos daquele circuito do GP de Macau de F3, em vez do motor eu só ouvia o Ayrton me cochichando no ouvido: - Pé embaixo, encha o motor, só belisque no freio, agora é reduzir para sair forte para a reta... - Era um controle remoto nos meus tímpanos.
Aprendi muito com o Becão. Foi ele quem me apresentou à Van Diemen, me arrumou o lugar de piloto oficial (paga-se muito menos para competir no campeonato) e, em 1981, me mostrou o caminho das pedras da Fórmula Ford 1600 inglesa. Adiantou o meu lado, tanto que ganhei 13 das 26 corridas na F Ford 1600.
Conheci Ayrton Silva no Rio Grande do Sul, numa corrida de kart em Porto Alegre no verão de 1978, quando ambos estávamos na categoria inicial, a de Juniors. Era ele, o mecânico e uma perua Caravan branca de bunda arriada, de tanta carga que eles colocavam no carro. Lá dentro tinha kart, motores, pneus, ferramentas, roupas, bananas e um mundo de bugigangas que eles carregavam e descarregavam todos os dias.
Como eu já tinha a Sofia --uma tremenda C10, Chevrolet-- e um trailer onde cabia uma dúzia de karts, fiquei com pena dele e ofereci guarida na Sofia. Foi nossa primeira partilha nas pistas. Daí ficamos amigos. Uma amizade que a gente selou com uma contravenção dele ao dirigir o meu Fiat 147 em Viamão, no Rio Grande do Sul, num sábado de treinos. O Ayrton tinha esquecido as luvas no hotel e me pediu o carro emprestado para ir buscá-las. Na volta, foi parado por excesso de velocidade e levou uma multa. Ficou quietinho. Só me contou à noite. Afinal, como amigo responsável, evitou me deixar nervoso antes da corrida.
O Becão era um cara solidário. Muito divertido com os íntimos. Era brincalhão, mas essa faceta do seu caráter ficou escondida, porque a maioria só conheceu o Ayrton Senna piloto. O tipo sério, dedicado e superprofissional que maravilhou a gente com seu talento na pista. O moleque, esse era um perigo. Comer ao lado dele exigia a atenção de uma largada. Se bobeasse, o prato da gente ficava cheio de vinagre ou o copo de leite apimentado. Pasta de dente e creme para barba eram guardados em cofre, para você não ficar com o rosto todo melecado e com a boca espumando.
Certa vez eu me vinguei bonito e com muita classe das sacanagens dele. Foi num fim de semana em que só ele corria pelo campeonato inglês de Fórmula 3. Eu folgava na Fórmula Ford. Levantei tarde, para curtir na cama uma daquelas manhãs frias e garoentas da "Ilha" e deparei com um pacote muito bem-feito sobre a mesa da cozinha, embrulhado em papel de alumínio, bem ao estilo Ayrton Senna. Abri e lá estava um belo sanduíche com a manteiga bem espalhada. Minha boca se encheu de água, mas logo pensei que ali tinha sacanagem. Examinei o sanduíche com a ponta dos dedos e não vi nada suspeito, a não ser o fato de que o embrulho tinha sido deixado pelo Becão, aquele cara tão cheio de cuidados. Tomei um café preto com bolachas de olho gordo no sanduíche, mas resisti à tentação. Quando o Ayrton me telefonou, coisa que sempre fazia para contar como havia sido a corrida -- e que, para variar, ele ganhou --, eu lhe dei os parabéns e emendei:
- Legal, assim você tem a grana do prêmio para comprar outro sanduíche, porque aquele que você esqueceu aqui virou o meu breakfast.
Só quando ouvi um sonoro palavrão do outro lado da linha é que tive a certeza de que o meu almoço estava garantido.
Lembro também que na nossa fase de vacas magras, entre 1981 e 1982, ele na Fórmula 2000 e eu na Fórmula Ford, os prêmios por vitória eram de 100 e 200 libras, mais ou menos 400 e 800 reais neste começo de milênio. Então a gente tirava a barriga da miséria. Fazíamos um banquete no histórico restaurante Doric, o único de Snetterton e onde o Ralph Firman, dono da Van Diemen, levava todos os pilotos brasileiros para acertar os contratos.
Na nossa casa a culinária era uma tragédia. O melhor que saía era um macarrão com creme de leite que até hoje não sei como podia ficar tão duro. Só dava para comer na hora, quente, depois virava um tijolo. Comida boa e cheirosa só quando a dona Neyde, mãe do Becão, visitava o filho. A vida só foi melhorar mesmo na casa de Esher. Lá tínhamos a dona Juraci Sanovisky (uma brasileira que depois ficou com Ayrton), que caprichava no feijãozinho e nas bistecas.
Era meados de 1985, eu corria na Fórmula 3000 e o Ayrton estava na Lotus John Player Special. Em vez do Alfasud caindo aos pedaços, nosso primeiro automóvel na Inglaterra, a gente já desfilava de Escort, depois de Renault, Honda e Mercedes-Benz. E se na nossa primeira casa, em Norwich, as 360 libras de aluguel eram divididas, no casarão de Esher eu não pagava nada. O Becão comprou a propriedade e não me cobrava aluguel. Morei um bom tempo no vácuo.
A lembrança do Ayrton que mais me dá arrepios é a do GP do Japão de 1988 --aquele em que ele ganhou seu primeiro título. Todo mundo lembra que foi a corrida do século. O homem teve problemas na largada, partiu em 16o, passou todos nós e venceu. O que poucos sabem --e nem sei se alguém, além dele e de mim também ficou sabendo-- é que eu só não tirei o Ayrton daquela corrida por milagre.
Acho que fui o oitavo cara que ele ultrapassou. Vi a fera no retrovisor naquele trecho sob a ponte do circuito de Suzuka e pensei: vou dar uma cutucada no freio, ele me passa por dentro e ainda pego o vácuo do McLaren.
Pensei e fiz. Só que o freio não obedeceu e fomos juntos para dentro da curva. No desespero, e para evitar a porrada, tirei o pé, ele mudou o traçado e passou por fora, raspando na minha roda dianteira. Ainda hoje essa lembrança me dá um frio na barriga.
E tudo porque um mecânico babaca fixou mal a garrafinha com água que a gente leva no cockpit para beber, através de um tubo, durante a corrida. A garrafa já estava solta e no meio das minhas pernas, mas no instante que fui dar passagem ao Ayrton ela caiu entre o pedal do freio e o meu pé e impediu a brecada.
Ninguém acreditaria nessa história se, por infelicidade, tivesse acontecido a batida e ele perdido aquele título mundial. Fórmula 1 é isso. Tanta tecnologia, tanta sofisticação, mas basta uma volta a menos num parafusinho para mudar --como já mudou-- o resultado de uma corrida ou de um campeonato. (Folha Online)

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Mosca-dragão

Pegoava?

Jundu