Crônica

Uma questão acadêmica. Só uma

Marcelo Mirisola*
Domingo retrasado, num 7 de setembro meia-boca, o Estadão publicou uma entrevista com Richard Parker, antropólogo e professor da Universidade Columbia. As perguntas feitas por Mônica Manir me chamaram mais atenção do que as respostas do professor norte-americano. Suspeitei de um acordo tácito entre entrevistado e entrevistadora: como se a entrevistadora já farejasse (ou soubesse mesmo) das respostas mas não quisesse aceitá-las, embora concordasse com o – digamos – pano de fundo de sua própria curiosidade. Trataram de pedofilia.

É aquela velha história: os sabichões falam as mesmas coisas que os energúmenos, porém, usam pompa e circunstância para latir e disfarçar o boteco que existe dentro de suas respectivas almas. Às vezes escorregam no quiabo e são honestos. Algo de hortifrutigranjeiro ecoou nas palavras do filósofo da Universidade Columbia, apesar do malabarismo retórico e da cumplicidade da entrevistadora.

Foi essa xepa que me fez lembrar do professor e filósofo Renato Janine Ribeiro. Sim, lembrei da última escorregada no quiabo de um figurão da nossa academia. Talvez o ocorrido já esteja enfumaçado nas cabeças dos leitores. Mas não custa nada voltar à jaula dos macacos.

Vamos lá. Na ocasião da tragédia acontecida com o garoto João Helio, Renato Janine Ribeiro chocou seus pares ao um publicar um texto no qual optava pelo maior – e talvez mais antigo – lugar-comum de todos: o olho por olho.

Seus colegas não o perdoaram. Ficaram chocados não pelo fato de um garoto ter virado paçoca nas ruas do Rio de Janeiro (ninguém mais lembra disso, né?), mas porque Janine aparentemente distanciou-se do pensamento acadêmico. Esqueceu-se, entre outras coisas, que pertence a uma comunidade, e que, sobretudo, pertence a um discurso. O pressuposto desse discurso é inegociável. Renato Janine Ribeiro devia ser um cientista.

Parker foi um cientista na entrevista do Estadão. O tema espinhoso – repito – era a pedofilia. A entrevistadora queria saber (ou confirmar) se “a atração sexual por crianças pode ser classificada como orientação sexual”. Impressionante o aparente desinteresse e a distância que Parker conseguiu manter do tema (não só nessa resposta, mas no decorrer de toda a entrevista). Vejam o que diz:

“Essa conceitualização não nos ajuda muito. Já é difícil trabalhar questões de orientação sexual dentro do seu uso mais comum, ou seja, tratar o mesmo sexo ou o sexo oposto como objeto do desejo. Ao se ampliar esse conceito para o desejo por crianças e jovens, só se confunde mais um campo já bastante arenoso conceitualmente”.

Ele chega quase a flertar com a “causa pedófila” quando admite que há desejo e objeto, isto é, sujeição de um sexo a outro em relações “comuns”, mas escapa pela tangente ao sugerir confusão em determinado campo “bastante arenoso”.

E põe arenoso nisso. Sei lá, eu acho que esse Parker já abusou de criancinhas ou foi abusado por elas. Porque um cara que se exime da resposta direta (porém dá indícios de que o “objeto em questão” merece um aprofundamento de estudo...) e usa uma retórica escorregadia dessas é – no mínimo – suspeito. Vejam bem: antes de o “cientista” descartar malandramente a paixão em seu julgamento, mistura pedofilia e papai-e-mamãe no mesmo pacote e, se não bastasse, ainda transfere a responsabilidade ou a carga de dizer sim ou não para uma... “questão conceitual”! Cazzo! Vai ser vaselina assim lá na CPI dos Grampos!

Foi exatamente nesse ponto que me lembrei de Renato Janine Ribeiro. Nosso cientista devia aprender a ser “cientista” com esse gringo.
Nada – aos olhos dos pares de Janine – justificaria um texto movido pelas paixões cruentas e/ou pela sede de vingança. O arroubo do professor seria de muito bom tom na mesa de um Franz Café da vida ou num prostíbulo infantil no sudoeste do Pará, jamais no caderno de cultura do maior jornal do país.

Isso tudo – infelizmente – é mais chocante do que parece. Não me interessa, aqui, reproduzir "os argumentos" do professor de Ética da USP por um motivo simples: o distante e sumido Carlos Massa – lembram do Ratinho? – era muito mais esclarecedor, divertido e verossímil do que Janine Ribeiro e Richard Parker juntos. Os dois, Ratinho e Janine Ribeiro, embora não falem a mesma coisa, pensam da mesma maneira. Se Richard Parker se juntasse a eles – tenho certeza – formariam um novo Trio Parada Dura.

Não só Janine Ribeiro reproduziu (sem talento, diga-se de passagem) o pensamento de Ratinho, como seus pares à época ecoaram os latidos de ambos.

Um parêntese: quero dizer que admiro Ratinho como comunicador, tenho pena de Janine, e discordo evidentemente dos dois. O problema é que fico embolado no meio de campo. Numa posição privilegiada, mas embolado. Nem USP, nem SBT.

Nem Vila Madalena, nem cracolândia. Não quero, aqui, reclamar da minha condição. Mas posso dizer que optei pela exclusão. E aí, é claro, fui excluído. Se não fosse assim, eu não usufruiria de uma alça de mira privilegiada, da qual, aliás, não abro mão por nada neste mundo. Algo que eu posso tranqüilamente chamar liberdade. Sou o cara que – como apontou meu amigo Bortolotto – sempre sai do bar antes da quebradeira.

Isso quer dizer que a arbitrariedade das exclusões é que me dá liberdade para excluir também – às vezes até com certa violência, e daí?

Não tenho problema algum em dizer que qualquer coisa que eu tenha afirmado, ou que eu venha a afirmar daqui para frente, ou foi ou poderá ser fruto do meu despeito e/ou das escolhas erradas que faço/que fiz desde sempre, tanto nos meus livros como aqui, nesta coluna do Congresso em Foco. Isso pressupõe um risco que as bichinhas culturais, os acadêmicos e meus coleguinhas escritores (com raríssimas exceções) jamais iriam assumir publicamente. Eles, afinal, têm um discurso. Eu tenho vários. Nem o sumido Ratinho chegaria a tanto, acho que não.

A entrevista do professor Richard Parker só faz confirmar que ele, Janine e os demais coleguinhas (as bichinhas culturais supracitadas que empestam os jornais e veículos de comunicação, e os nerds-executivos que os subjugam) são todos iguais ao Ratinho.

Quer dizer... "iguais", não. Piores, muito piores. Quando o calinho deles está sob pressão são capazes de uma violência acusatória capaz de intimidar o mais alucinado maorronzinho em seus achaques. Disfarçados de iluministas, os colegas de Janine à época repudiaram sua companhia. Quem acompanhou as cartas e os artigos publicados no mesmo jornal (Folha de S. Paulo) é testemunha. Os defensores da razão foram mais virulentos do que Ratinho, os assassinos do pequeno João Hélio, e Janine juntos.

"Mas e agora?" Devem estar se perguntando os pares de Janine Ribeiro: "E agora que o verniz da ciência e da seriedade não serve mais para esconder a viralatice?".

Caros, o que eu tenho a lhes dizer é o seguinte: agora é tarde, vocês deram azar. Janine e seus pares têm em comum com os assassinos do garoto João Hélio – será que alguém ainda lembra? – o acidente de percurso. Da mesma forma que o garoto não podia ter ficado dependurado naquele cinto de segurança, o professor ficou dependurado na razão, e deixou um rastro fedorento e odioso de humanidade pelo caminho. Isso é imperdoável, professor. Como é que o senhor e os seus pares vão falar em “conceitos” depois disso?

À época, os pares de Janine exerceram a autoridade do lugar-comum que tanto abominavam. Usaram a razão para apedrejá-lo. Transformaram-se todos em Ratinhos, eu lembro muito bem.

Creio que Richard Parker, o gringo que deu a entrevista para o Estadão, visivelmente tem culpa no cartório, não me engana. E o crime dele não é interceder a favor da pedofilia, claro que não. Se ele quisesse podia defender a pena de morte ou a vida sexual dos besouros da Ilha de Sumatra, desde que fincasse posição. Mas tem culpa, a meu ver, por esconder-se atrás de um discursinho de merda, e relativizar a maldita questão. Enfim, por ser incapaz de exercer a própria humanidade – no que ela poderia ter de mais detestável, e mais sublime.

Ele é um espécime deplorável, igual aos coleguinhas brasileiros: todos especialistas em não cagar e não desocupar a moita, só fazem errar o alvo grotescamente; desde sempre se debateram em torno de irrelevâncias ( espero que ao menos tenham descoberto a extensão das hemorróidas de Machado de Assis ou a causa da comichão anal dos personagens ambíguos de Guimarães Rosa). Academia remete a cloaca. A casa desses camundongos somente não caiu de vez porque nunca existiu. Pelo menos para mim, não. E tem mais. Sinceramente, não preciso da chancela nem da interpretação de ninguém. E aproveito essa oportunidade para pedir encarecidamente: não percam tempo comigo, não me estudem! Eu dispenso punheta batida de pau mole.

De vocês eu só quero uma coisa (daqui a pouco digo o que é).

Vocês que ajambram periferias e inventam Paulo Lins, Ruffatos e cia, vocês que perderam a pose (nem vou falar da "razão") e perderam o verniz, o que têm a me dizer diferente do Ratinho? Quem vai acreditar em suas citações, nos seus joguinhos de inteligência masturbatórios e politicamente corretos, nos seus textos chatos e mal escritos publicados nos cadernos de cultura, quem vai acreditar nos prêmios, nas bolsas e nas medalhas que concedem uns aos outros? Quem vai acreditar em suas teses broxantes?

Bem, o que posso dizer é: intelectuais da USP e da Casa do Saber, colegas e carrascos de Janine Ribeiro,esqueçam Benjamim, esqueçam Adorno e quejandos, esses caras são muita areia pros vossos caminhõezinhos,vocês se merecem,e merecem Carlos Massa,o Ratinho. Para encerrar, faço um desafio e uma sugestão: me digam quem comia a bunda do Mário de Andrade. Só isso que quero de vocês.

Se algum acadêmico, colega de Janine Ribeiro ou o próprio, responder a essa questão fundamental, dou o braço a torcer. Caso contrário, aqui vai minha sugestão: a construção de um busto de Carlos Massa, O Ratinho, defronte à faculdade de Filosofia e Letras da USP – com o cacetete em riste, apontando (é claro) para os vossos traseiros.

*Marcelo Mirisola, 42, é paulistano, autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô, O azul do filho morto (os três pela Editora 34), Joana a contragosto (Record), entre outros.

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