Crônica

A plenitude da couve-flor

Marcelo Mirisola*
Sou vizinho da favela Pavão-Pavãozinho, moro em Copacabana. Em menos de vinte dias, é o segundo tiroteio que acontece por aqui. Nas duas ocasiões coincidentemente eu estava debaixo do chuveiro. Pensei em duas coisas: em primeiro lugar, na sensação de felicidade, nojo e liberdade que experimento toda vez que pago meus impostos, e os juros pro Setubão Jr. Isto é: quando cometo uma dessas atrocidades ditas “civilizadas”, o faço somente para fingir que está tudo bem. Antes de ser um cidadão exemplar, sou um tolo esclarecido. Mas tudo tem seus limites, podem me assaltar à mão armada e me cobrar juros e impostos, eu finjo que não é comigo, eu finjo que o Setubão virou santo depois de morto (aliás, já havia sido canonizado em vida) e pago. Agora, votar eu não voto. Nem no primeiro, nem no segundo turno.

Assim me desobrigo. Em suma: melhor ser enganado por mim mesmo do que pelas ações sociais do grupo Xuxa, por Fátima Bernardes ou pelo Washington Olivetto.

E já que a vida é diária (seria melhor se não fosse, como diria Millôr Fernandes), recomendo a reprise da novela Pantanal, sobretudo as interpretações de Giovanna Gold e Sérgio Reis, respectivamente Zefa e Grandão.

Bem, todo esse preâmbulo é para dizer que me falta “suporte cívico” para condenar, sei lá, o maníaco de Guarulhos. Se o fizesse, não teria subsídios para defender a pena de morte para o inventor da esfilha de frango, nem tampouco poderia zoar a conscienciazinha lírica dos irmãos Salles. E também jamais teria estofo para concordar com Bento XVI no que diz respeito ao desconforto que é “fazer amor” usando camisinha... ou alguém acha que o Papa é contra a camisinha por outro motivo?

A vida é um desconforto. Acredito sinceramente em rebanhos, isto é, acredito que viver em sociedade é mais fácil e conveniente do que rezar o Pai Nosso toda santa manhã antes do holocausto de cada dia. Ninguém, enfim, é obrigado a perdoar ninguém sob o risco de não obter o perdão para si mesmo, aceita-se e ponto-final. Aceita-se, entre outras brutalidades, a esfiha de frango e o fato de que a vida não tem o alto valor que lhe atribuímos. A não ser que você nasça sem cérebro e desfrute da plenitude de ser uma couve-flor – que não vota, não vai ao cinema, e, na verdade, prescinde do STF para julgar suas melhores virtudes.

A vida não vale nada, aliás. Esse negócio de “qualidade de vida” só serve para corretor sacana vender apartamento de dois dormitórios em Osasco. Se a ciência realmente estivesse evoluindo, trabalharia no sentido de diminuir o tempo do homem sob a face da terra, e não o contrário. Em sendo assim, diante dos paradoxos e da hipocrisia social, temos, a meu ver, duas opções; quais sejam: a piada e o vislumbre da morte. Depois de ver os peitões da Giovanna Gold, em Pantanal, sugiro ao internauta a leitura de Cioran, esse cara é minha Seicho-No-Ie.

Bom dizer que uma alternativa, a piada, não exclui a outra, a morte. O exemplo disso é um vídeo que vi no You Tube (depois fiquei sabendo que passou na televisão...).Trata-se da entrevista de um homem-bomba. A última entrevista, a bem-dizer. O internauta acompanha desde o café da manhã do homem-bomba até o momento em que ele e o repórter sobem num Passat-Iraque e vão dar “uma voltinha esclarecedora” no deserto, digamos assim.

Se não me engano, o "passeio", ou o alvo dos dois, era um comboio americano que transportava alimentos. No caminho, o repórter e o terrorista conversam sobre virgens no paraíso, plantações de azeitonas e o suposto envolvimento de jogadores de futebol com travestis, e, assim, entre uma e outra quimera, os dois se divertem e o motorista, às vezes, é obrigado a desviar de um buraco no meio do caminho... para não explodir antes do tempo.

O homem-bomba é uma gentileza só. Sereno, doce, solícito. Não seria exagero dizer que já o temos como um tipo sensato que certamente fez as orações devidas – e escovou os dentes – antes de virar mingau de Alá. Um cara legal que levanta a sobrancelha, pede licença ao repórter, e ajeita os explosivos com carinho no banco de trás do carro. O terrorista ainda tem “leveza” para contar uma piada sobre um judeu que havia perdido a fimose num atentado... mas, de repente, interrompe a conversa, e diz ao repórter que está acontecendo algo muito mais engraçado no horizonte: aponta seu alvo.

E pára o carro. Obsequioso, abre a porta e pede ao repórter para sair. Os dois se despedem com uma saudação do tipo "Alá esteja contigo". Em seguida – essa é a última imagem do homem-bomba –, ele abre um sorriso como se tivesse terminado a piada da fimose, e segue seu caminho, aliviado.

Ao contrário do que poderíamos supor, o terrorista não nos abandona no deserto, nem ao repórter. Ele carrega uma tonelada de bombas, e um microfone consigo. Temos a imagem do carro, e o áudio.

A conversa continua. Eles falam de virgens, de plantações de azeitonas, e falam do paraíso, e riem de algo que a legenda da Al Jazira não consegue traduzir a tempo. Talvez estivessem rindo dos travestis e dos jogadores de futebol... sabe-se lá.

A cada segundo, o Passat-Iraque vai ficando menor diante da paisagem de areia: que, por ser deserto, também é um lindo dia de sol, o horizonte ao longe, um ponto vermelho (o carro do terrorista) a caminho de três pontinhos verdes (o comboio). Dali a pouco – questão de um suspiro de enfado do repórter – notamos uma pequena explosão silenciosa no final do arco-íris. Antonioni assinaria embaixo.

Se o maníaco de Guarulhos fosse um banqueiro talvez tivesse uma sensibilidade parecida. Mas não era o caso, nem cineasta, muito menos banqueiro. Um cara como o maníaco, que confessou o estupro e o assassinato de mais de cinqüenta mulheres, deve achar que a vida não vale grande coisa. Concordo com ele, acho que não vale nada mesmo, porra nenhuma. Mas – dependendo das circunstâncias – pode ter um final muito bonito.

*Marcelo Mirisola, 42, é paulistano, autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô, O azul do filho morto (os três pela Editora 34), Joana a contragosto (Record), entre outros.

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