Brasil



Língua

Thomaz Magalhães no Trem Azul
O que temos abaixo, resumido e editado, é um gênio da música, o Caetano Veloso, falando, se explicando sobre crítica que fez a lingüistas. E com isso fazendo aparecer outro lado seu, pouco conhecido mas efetivo, do seu denso conhecimento da língua portuguesa. Do poeta. Uma gostosa aula. E ao final, depois de mostrar que gosta e pode fazer crítica lingüistica, uma paulada nos lingüistas. A seu estilo de sempre. Bem dada.

(...) de uma vez por todas a segunda pessoa do singular não existe no Brasil. É "você" e acabou. A segunda do plural, então, já tinha morrido antes de o Império terminar. Considerava (a professora que me deu o livro que perdi) também como inexorável o desaparecimento futuro das conjugações reflexivas (os verbos pronominais).

Ora, eu acho que os gaúchos dizem "tu" a torto e a direito (talvez mais a torto do que a direito); os cariocas conjugam, com muita ginga, verbos na segunda pessoa para enfatizar ironia ou agressividade ("tás me estranhando!", "tás por fora", "tens cara de veado" etc.) e usam o "tu" para mostrar informalidade ("tu é gay, tu é gay que eu sei", o Maracanã grita para alguns jogadores; meu filho de 16 anos diz a seus amigos - e ouve deles - coisas como "tu vai lá e chega na mina."); os pernambucanos perguntam sempre "viste?" - que muitas vezes eles suavizam para "visse?"; os paraenses conjugam o verbo na segunda pessoa, quando escolhem "tu" em vez de "você" - e muitos deles usam o possessivo na segunda do plural (a um casal ou grupo de amigos perguntam: "esses livros aqui são vossos?").

E, seja como for, todos os brasileiros, inclusive (talvez mesmo principalmente) as crianças entendem as letras das canções de Orestes Barbosa ou de Chico Buarque em que o cantor se dirige à amada na segunda do singular. Não se pode dizer que todas essas pessoas não possuam esses recursos da língua. Muito menos que as estará oprimindo quem lhes explicar como funcionam. Por outro lado, meus amigos baianos e cariocas (inclusive muitos semi-analfabetos) riem dos mineiros (e de alguns falantes do interior de São Paulo) quando eles omitem o pronome dos verbos reflexivos: "paixonei com ela" (em vez de "me apaixonei por ela"), "espera eu aprontar" (em vez de "espera eu me aprontar"), "assustou" (em vez de "se assustou") etc.

(...) Claro que sei que se escrevia "frecha" (até os poetas românticos ainda usavam essa forma) e que , portanto, dizer "TV Grobo" não é exatamente errado. Mas as pessoas que dizem "grobo" são as mesmas que têm vocabulário menor, menos acesso aos conhecimentos, menos poder. Os emergentes brasileiros que, saindo da pobreza para a crescente classe média, desejam aprender com os Pasquales da vida são os alvos finais da agressão desses lingüistas.

Mas, por exemplo, há "tendências" misteriosas: por que leio hoje nos jornais e nos livros quase sempre "em um" ou "em uma", em vez de "num" ou "numa"? Será que há uma regra que desconheço? Os falantes que ouço, todos, sempre disseram "o corpo foi encontrado num canto da praça Genral Osório". Mas os jornais escrevem "em um canto da General Osório". As moças da TV já dizem preferencialmente "em um". E já começo a ouvir pessoas de carne e osso dizendo "em uma rua escura" em vez de "numa rua escura". Será que é regional (como a professora que me mandou o livro toma uma inclinação mineira contra os verbos pronominais como universalmente brasileira, eu estarei tomando uma tendência baiana a fazer a contração da preposição "em" com o artigo indefinido como regra nacional?)? "Você e tu", está na minha letra de "Língua".

Odeio ter lido um elogio à decisão do novo tradutor de Proust de "evitar o lusitanismo "raparigas'" e chamar o título do terceiro volume de "Em busca do tempo perdido" de "À sombra das moças em flor".

Mas quê que é isso? Trata-se de um livro do início do século 20, contando histórias que se passam no século 19, um livro culto, complexo - por que diabos deve-se sacrificar o ritmo e a sonoridade bonita que Mário Quintana encontrou para traduzir "À l'ombre des jeunes filles en fleur" (inclusive mantendo o mesmo número de sílabas e a acentuação no "i" do original)? Só para usar o termo "moça", vulgar, pesado, e dar a impressão de que escreveu em português brasileiro "natural", sem "lusitanismo"? Não! Para mim ficou foi sem a beleza de "À sombra das raparigas em flor".

O que isso tem a ver com os lingüistas, a língua falada, a norma culta, a norma oculta, a demagogia e a mania de pensar que o melhor modo de resolver o problema das favelas é destruir o sistema de esgoto de que desfrutam as "elites"? Tudo.

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