Por partes...

As cartas de Chico Picadinho, quatro décadas atrás das grades

Preso por esquartejar duas mulheres, ele ocupa há quase dez anos uma cela individual de 8 metros quadrados

Bruno Tavares
O dia 3 de agosto é tragicamente inesquecível para Francisco Costa Rocha. Há exatos 42 anos, numa chuvosa madrugada de segunda-feira, ele matou e esquartejou a bailarina Margareth Suida, dando início a um dos mais longos períodos de cárcere da história do sistema prisional paulista. Somando as duas vezes em que esteve preso por crimes quase idênticos, o homem eternizado sob a alcunha de Chico Picadinho completará em novembro quatro décadas atrás das grades.

Pelo Código Penal brasileiro, ninguém pode ficar na cadeia mais do que 30 anos, independentemente da pena definida no julgamento. O que transformou o caso de Chico numa "prisão perpétua" foi uma interdição civil, obtida pelo Ministério Público em 1997, pouco antes de a pena imposta a ele chegar ao fim. "Nada mais devo à Justiça Criminal. Nada fiz à Justiça Civil. Entretanto, sou interditado, algo que me faz (Franz) Kafka no seu O Processo", desabafou em carta endereçada a um de seus defensores.
Há quase dez anos, o mundo dele é uma cela individual de 8 metros quadrados na Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté, no interior paulista, unidade que abriga Francisco de Assis Pereira, o Maníaco do Parque, e Mateus da Costa Meira, o atirador do Shopping Morumbi. "Uma pergunta me surge a mim mesmo: ora, se fui julgado e condenado como semi-imputável (pessoa que apresenta traços de comportamento anti-social), se não ocorreu exacerbação de periculosidade, se a minha conduta foi sempre boa, se nenhum outro delito ou falta média ou grave cometi, se jamais tive surto psicótico, nunca necessitando de medicação psiquiátrica, por que ser classificado de inteiramente incapaz?", questiona Chico.
A relutância da Justiça em libertá-lo pode ser explicada pelo histórico dos crimes que cometeu. Tudo começou em 1966, num apartamento da Rua Aurora, centro de São Paulo. "Na época", relembra Chico, "trocava o dia pela noite, afogado na bebida e no uso de anfetaminas, de maneira que o acontecido mais me parecia um horrível pesadelo do que um fato real". Preso três dias depois no Rio, assumiu o crime. Até hoje, diz desconhecer os motivos que o levaram a estrangular e retalhar o corpo da vítima.
Em 1968, foi condenado pelo júri a 15 anos e 6 meses de prisão e mais 2 anos e 6 meses por vilipêndio (aviltar ou ultrajar cadáver). A sentença acabou reformada pelo TJ, convertendo-se em 18 anos de reclusão - nesses casos, conserva-se a pena menor. Após alguns anos na extinta Casa de Detenção do Carandiru, pediu transferência à Penitenciária do Estado, onde passou a se dedicar com afinco ao trabalho, ao estudo e à pintura.
Na cadeia, foi submetido a um sem número de avaliações psiquiátricas e eletroencefalogramas. Diagnosticaram neurose, conflitos não superados e nenhum vestígio de psicopatia. O parecer favorável dos médicos abriu caminho para o pedido de progressão para o regime semi-aberto, concedido em meados de 1972. Dois anos depois, em 1º de junho de 1974, saiu em liberdade condicional.
"À vista de que nada de anormal em mim fora detectado e a caminho da liberdade", relata Chico, "casei com a moça que me acompanhava desde o início de minha prisão". "O enlace matrimonial ocorreu num cartório de Bauru e a festa no prédio da administração do Instituto de Penal Agrícola. Tudo muito simples e bonito." Mas antes que 1975 terminasse, o casamento chegou ao fim, "porém dando de bom fruto uma filha que passou a ser o orgulho da mãe e o meu também".

CRIME TRESLOUCADO

Sem que se desse conta, Chico começou a repetir o mesmo enredo que o levara à prisão dez anos antes. "Após um dia de desventura nos negócios e uma noite de orgia, no apartamento que eu morava, quase na esquina da Rio Branco com a Duque de Caxias, a menos de mil metros, bem menos, do endereço do primeiro crime, aconteceu", recorda num manuscrito de 11 páginas, referindo-se ao assassinato da prostituta Ângela de Sousa Silva. "Ao contrário do primeiro, no segundo as imagens eram de modo a não ter dúvidas da motivação objetiva do tresloucado crime". Julgado e condenado a 10 anos e 8 meses de prisão, teve a pena elevada pelo TJ a 30 anos. Resultado final: 20 anos de cárcere.
Aos 65 anos, Chico ainda anseia por liberdade. "Os meus atos criminosos foram desumanos, reflexo dos meus pensamentos e sentimentos. Fácil me era culpar o medo, as pessoas, as idéias filosóficas ou religiosas como desencadeadoras dos desatinos. Fácil me era deixar levar pela corrente, pelo vento, pelo ambiente, joguete de influências contraditórias. Difícil me foi perceber e crer que tudo é uma questão de visual de mundo, de projeção da mente." (Do Estadão)

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