Arquitetura


Tributo a Joaquim Guedes

Maria Clara R. M. do Prado
Combativo, centrado, sensível, criativo, imaginativo, irrequieto. Todos esses adjetivos compõem o perfil de Joaquim Guedes. Marcaram o seu jeito de ser na vida. Nenhum deles, porém, consegue explicar a argúcia com que sua inteligência era capaz de captar a essência dos discursos e a cortante rapidez com que media e avaliava fatos e opiniões.
Arquiteto e urbanista, foi, antes de tudo, um pensador, um homem cuja mente vivia em eterna ebulição, atenta ao mais e ao menos importante. Nada lhe escapava. Os olhos, de vivacidade contundente, funcionavam como dois sensores a perscrutar as pessoas à sua volta.
Tinha opinião para tudo e ávida disposição para o debate. Não gostava da lei que aboliu os cartazes das ruas da cidade de São Paulo porque considerava isso uma ingerência descabida na livre vontade dos cidadãos, na ocupação do espaço urbano. E, na contramão da tendência ecológica, achava ridícula a mania das autoridades locais de gastarem tempo e dinheiro do povo com a plantação de árvores ao longo das avenidas. As ruas, dizia, foram feitas para os veículos transitarem. As calçadas, para as pessoas passarem. Polêmico? É claro, mas se assim não fosse, não seria o ponto de vista do Joaquim Guedes.
Uma das poucas vozes com coragem de criticar a arquitetura de Oscar Niemeyer - que considerava muito distante do objetivo funcional de atender às necessidades dos homens -, Joaquim Guedes sempre defendeu o rigor técnico dos projetos e o entendimento de que a arquitetura deve servir, antes de tudo, ao homem, em sua dimensão social e produtiva.
"Arquitetura é a arte de construir", proclamava, com o tom de voz baixo e afável que lhe era característico, mas que podia facilmente chegar à exasperação quando o interlocutor ousasse tecer alguma consideração contrária.
Sua trajetória profissional começou cedo. Recém-formado pela FAU - a tradicional Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP -, Joaquim, com apenas 24 anos, participou do concurso de projeto urbanístico para a construção de Brasília. Foi um dos primeiros trabalhos entre muitos em sua atuante carreira profissional. Ficou famoso pelas cidades que criou no país nos anos 70, no rastro da ocupação regional movida pela exploração do minério de ferro. Participou do concurso internacional para a construção do Centro Tecnológico Integrado na Bicocca, em 1987, tendo Lina Bo Bardi e Roberto Sambonet como parceiros. A Bicocca era uma área degradada, localizada no norte da Itália, com a característica de ter sido palco de famosa batalha entre povos vizinhos quando o Ducado de Milão pertencia aos franceses, em 1522.
Era uma das poucas vozes com coragem de criticar Niemeyer, pois para ele a arquitetura deve servir ao homem, em sua dimensão social e produtiva
O projeto de Joaquim Guedes na Bicocca não foi o vencedor, mas até hoje suscita interesse de arquitetos e urbanistas pelo diferencial de sua proposta.
Tinha inclinação pelo simples na elaboração das estruturas que deviam ser criadas a partir das necessidades do presente, em linha com o grande arquiteto finlandês, Alvar Aalto, seu grande inspirador, guiado pela preocupação com a funcionalidade da obra. Isso era uma obsessão.
Como arquiteto e urbanista, Joaquim Guedes foi fundamentalmente um intelectual. É conhecido o prefácio que escreveu em 1995 para a edição nacional do livro "Eupalinos ou o Arquiteto", de autoria de Paul Valéry, publicado originalmente na revista "Architectures" em 1921. O texto discorre sobre uma conversa que Fedro e Sócrates teriam desenvolvido, depois da morte, em continuação aos diálogos iniciados em vida. Falam sobre o arquiteto Eupalinos de Mégara, que teria construído o templo de Ártemis, sobre as artes, sobretudo sobre a arte de construir.
"Geometria Habitata" é o título do prefácio. A certa altura, ao mencionar as preocupações de Valéry com os princípios das criações humanas - "para o corpo, que chama de utilidade; ou bem para a alma, que persegue sob o nome de beleza.. os quais, com a solidez ou duração, constituem as grandes qualidades de uma obra completa, só a arquitetura as exige (utilidade e beleza), sendo por isso a mais completa das artes" - Guedes expõe os desafios do ensino no novo milênio.
"Faculdades de Arquitetura não diferem muito das velhas Escolas de Belas-Artes; parecem não saber atualizar o ensino da construção, coisa de engenheiro", diz no prefácio, criticando o estímulo a "exercícios fantasiosos, falsas megaestruturas, indiferentes à natureza dos problemas propostos, exageradas, insolúveis, ou absurdas: exercícios que excluem o aprendizado da paisagem e dos fatores econômicos e sociais, e maltratam as técnicas, em sua natureza e em seu papel enquanto cultura". E alerta: "Há que aprender a imaginar o objeto e ao mesmo tempo inventar a sua construção; do contrário, a escola se torna o lugar de indefinível adestramento do que chamam criatividade, com materiais e métodos quaisquer".
Mais recentemente, escreveu o prefácio do livro "Conversas com Gaudí", de César Martinell Brunet, discípulo do mestre catalão, editado pela Perspectiva, em 2007. Joaquim Guedes não apreciava os trabalhos de Gaudí enquanto arquiteto, pois tinha dificuldade de entender o propósito de sua obra.
Foi implacável: "Personalidade extraordinária, incomparável, solidão perturbadora, ele (Gaudí) pertence à legião dos cavaleiros andantes, antecedentes e seqüentes. Vejo ao seu lado Bispo do Rosário (da colônia Juliano Moreira em Jacarepaguá, dedicada ao tratamento de doentes mentais), a Dra. Nise da Silveira (fundadora do Museu de Imagens do Inconsciente), o Marquês de Sade e Oscar Niemeyer; todos pelo seguinte fato da maior relevância: os quatro desconhecem em seu trabalho a pessoa humana, que é o centro obrigatório de toda arquitetura desde os anos trinta - ao ser proclamado por Aalto: o homem está no centro da minha arquitetura", escreveu Joaquim Guedes, citando também "La Rebelión de las Masas" (de José Ortega y Gasset), que voltou a ler em 2006.
Joaquim Guedes nos deixou na noite de domingo, 27 de julho, após ser abatido, na rua, por tresloucado motorista que se esconde do crime cometido. Viveu com emoção. Morreu com emoção. Defeitos, tinha muitos, mas isso não importa. A morte tem o dom de levar consigo as falhas dos humanos. Vivas ficam as lembranças de quem perseguiu com ardor e coerência suas idéias. E uma curiosidade insolúvel: que conversas manterá ele com Fedro e Sócrates na eternidade? (
www.valoronline.com.br/valoreconomico/285/primeiro...)

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