Literatura

(Um complemento aos Novos Decrépitos) Homem Comum, Philip Roth

Marcelo Mirisola*
Lembrei de dois amigos, mas sobretudo lembrei do que eu perdi de mim mesmo ao longo da leitura deste Homem Comum, do Philip Roth. Antes de falar dos amigos, quero dizer que Roth me ajudou a reconhecer algumas perdas que há muito eu já devia ter contabilizado: entre outras coisas, não acredito mais em Buenos Aires, nem em Plazas Impossíveis & Solos de Bandoneón, de modo que agora só me resta esperar pelo fim – que meus dias não sejam tão tristes quanto o desse Homem Comum.

Até lá queria merecer a companhia de uns poucos amigos, e o amor de um vira-latas. Só isso.

Aos amigos, portanto. A primeira lembrança foi a do Marcelo Rubens Paiva. Sempre quis tê-lo como amigo. Eu sabia que um dia a gente ia sair por aí. Que ele ia me falar das garotas que não quiseram dar para ele, e eu lhe diria – como eu disse – que também tinha uma extensa lista de garotas que não quiseram dar pra mim, e que naquele momento era tarde demais para lamentar as trepadas não dadas, o tempo perdido... ou algo que o valha.

Pois bem, foi mais ou menos isso que aconteceu: lembrei da carona que ele me deu no seu furgão, e das costuras que fez no trajeto entre a avenida Cidade Jardim e a Praça 14 bis, lá no Bixiga.

Paivinha é um playboy no trânsito, e também é um tagarela. O tipo de motorista que narra o trajeto, fala um monte de coisas ao mesmo tempo, e xinga as lesmas que atrapalham seu caminho. Até hoje não conheci ninguém que tivesse a obrigação de passar por cima de tudo (inclusive de si mesmo) como o Marcelo Paiva. Impressionante, aliás, como ele consegue fazer as ultrapassagens absurdamente bem. Isso, confesso, me causou uma certa inveja e um despropositada satisfação de não estar no lugar dele, preso, dirigindo aquele maldito furgão.

Nesse ponto é que entra o livro de Philip Roth. Trata-se da história de um homem refém do próprio corpo. Mas não é só isso, a questão é a seguinte: dentro desse corpo – dizem – temos uma alma e às vezes (entre outras bobagens...) esquecemos desse detalhe. Todos somos reféns. Não lembro de quem é a frase: “O corpo é o arcabouço da alma”. Seria Platão? Talvez, mas se não for, fica valendo essa frase do filósofo romeno E.M Cioran, que é bem melhor: “O limite de cada dor é uma dor ainda maior”.

O livro de Roth é a lembrança de que podemos ser mais ou menos crédulos, de acordo com as circunstâncias impostas pela vida de merda que levamos, e pelas escolhas erradas correspondentes – não há como escapar disso, geralmente um desastre após o outro. Por um lado, a notícia é boa: porque lembra que somos diferentes de um abacateiro, e temos um treco chamado alma. Por outro lado, é profundamente triste: porque avisa que um abacateiro pode ser muito mais virtuoso que um homem, afinal um abacateiro produz abacates.

E foi exatamente nesse outro ponto que me lembrei do meu segundo amigo, Reinaldo Moraes. Quando o homem que é refém do próprio corpo descobre que sua folha corrida, ou caráter – cada um chama como quiser –, seria a única coisa que efetivamente poderia dar uma satisfação a esse corpo exaurido, cansado de guerra. Nesse momento, o filho do judeu joalheiro, narrador de Roth, descobre que esse “caráter”, digamos, não é pontual feito à reputação do bom e velho Hamilton,o relógio preferido do pai. Aí é que o livro começa a funcionar. Um pouco tarde, eu acho, perto da página 70. Quando o narrador de Roth percebe que seu prazo de validade exauriu. Ou seja, quando se dá conta que é um Homem Comum. Vamos ao livro, depois falo do Reinaldo Moraes.

O ex-publicitário bem-sucedido é um arremedo de si mesmo, daqueles tempos em que podia pegar um avião em Nova York e ir para Paris, o pretexto – ou quase um lugar-comum – era a viagem de negócios. Mas tão redundante quanto o pretexto era o rabo de saia que o esperava em Paris: a modelo Merete, quase trinta anos mais nova que ele, à época um cinqüentão no auge da carreira. O tempo correu: e, como não poderia deixar de ser, agora o Homem Comum não passa de um velho em “franca decadência”, tanto física quanto moral: largado numa confortável casa de praia na costa de Nova Jersey; perto do mar de sua infância, mais precisamente em Starfish Beach.

Seus dias são arrastados, e ele não pode sequer contar com a fantasia do próprio isolamento. Até a paisagem o atrapalha; então, para se distrair das piores lembranças, e do fim iminente, o Homem Comum resolve pintar quadros, e tem o talento de um “sapateiro” para a atividade – segundo um dos filhos que o despreza. Ele não tem como discordar do filho, porém não dá o braço a torcer: o Homem Comum sabe o que faz, sabe o canalha que é. Ou melhor, sabe o que fez, o canalha que foi.

Durante seis meses ministra aulas de pintura para os vizinhos aposentados, que ele não suporta. A admiração que sentia por Howie, seu irmão mais velho, se transforma em uma inveja declaradamente inútil. Sabe que jamais vai ter o amor de Lonny e Randy, os filhos trocados por mulheres mais interessantes, isto é, trocados por femmes choyée do calibre de Merete – a gata das suas aventuras em Paris (mais uma escolha que ele reconhece errada, e as melhores páginas desse livro, a meu ver). E ela, Merete, tinha idade para ser irmã de Nancy, a filha piedosa.

Nosso cambaleado Homem Comum não se acha à altura da filha Nancy – acredita mesmo que não merece ter o amor incondicional da garota, nem de Phebe, mãe de Nancy.

E não merece mesmo. Ah, Phebe, “o melhor em naturalidade que os quacres da Pensilvânia e o Swarthmore College podiam produzir”. Ou seja, a mulher que ele traíra com Merete, e que mais tarde, vitimada por um derrame, seria o espelho do seu definhamento. Ela, Phebe, e os amigos do Homem Comum. Todos espelhos. Todos comuns, apodrecidos; Brad Karr, o supervisor de criação que fora internado por depressão suicida e seu chapa Ezra Polock, condenado a um câncer terminal aos setenta anos... e por aí a coisa vai, e se prolonga naturalmente até chegar aos obituários dos jornais.

Esse é um livro que trata de apodrecimentos.

Em meio a válvulas, stents, desfribriladores e engenhocas do gênero, o Homem Comum vai levando sua carcaça rumo ao inexorável final da picada. O livro todo é um contraponto entre o homem que foi e aquilo em que se transformou: de certo modo, o Homem Comum chega à conclusão de que suas escolhas erradas não poderiam ter sido outras, foi o que ele conseguiu fazer da vida – isto é, suas asneiras e seu apodrecimento são inalienáveis, levam assinatura. Não podia ser de outro jeito.

Uma curiosidade: várias vezes, ao longo da leitura deste Homem Comum, imaginei Philip Roth debulhando parágrafo atrás de parágrafo ao som de My Way. O intérprete? Frank Sinatra (quem mais?)... Confesso: assim o livro ficou muito melhor.

No entanto, o que ele aprendera “... não era nada em comparação com a desgraça inevitável que é o final da vida. Se fosse tomar conhecimento do sofrimento mortal de cada homem e mulher que conhecera durante todos os seus anos de vida profissional, da história dolorosa de arrependimento, perda e estoicismo de cada um, de medo, pânico, isolamento e terror, se soubesse que cada coisa que lhe pertencera do modo mais visceral fora arrancada... (...)” . Enfim, se o Homem Comum olhasse no retrovisor talvez chegasse a uma conclusão: shit. Ou: “A velhice não é uma batalha. A velhice é um massacre”.

Esse livro devia servir de manual para os professores do Sesi de Hidroginástica da Terceira Idade. A propósito: Raquel de Queiroz, no final da vida, escreveu uma crônica estupenda sobre o tema. Não lembro o título da crônica, foi publicada no Estadão. Ela dizia – evidentemente em outras palavras – que ficar velho... é uma merda.

Voltando ao meu amigo Reinaldo Moraes. Depois da leitura acachapante dessa obra-prima de Philip Roth, não lembro, sinceramente, não lembro por que associei o Reinaldão com o Marcelo Rubens Paiva, ou por que não falei de amigos muito mais próximos. O fato é que o livro de Roth faz a gente temer as perdas, e os amigos talvez sejam a ameaça de subtração mais real dentre as inúmeras faltas que inevitavelmente acumularemos ao longo da vida. Talvez esteja explicado. O amor das mulheres – pelo menos para mim – vem em segundo lugar, porque o sofrimento e as perdas subseqüentes já estão embutidos no pacote. Nem seria preciso corroborar a tese de Roth, e dizer: o jogo amoroso é um jogo de subtração, para ambos os lados.

No começo deste texto, eu dizia que não acreditava mais nas plazas impossíveis nem em solos de bandoneón. Uma parte da minha vida não me dizia mais respeito. Entendi que o sentimento de mudança é, principalmente, sinônimo de uma sentença: perda. A vida é um álibi que não me engana mais. E o que nos resta – agora tenho a pretensão de falar por todos – é festejar os esquecimentos e os vaivéns, as virtudes, as atrocidades, as canalhices e os desacontecimentos.

Pensando bem, “os desacontecimentos” poderiam sempre vir acompanhados de caldinho de feijão e garrafas de Umburana. Há que se festejar os álibis furados, afinal, meu caro Paulinho “Picanha” de Tharso, temos que acreditar em qualquer coisa antes do apodrecimento, nem que seja no Frank Sinatra cantando My Way. No meu caso – eu que sou um analfabeto musical –, essa é a opção ou o vôo cego mais ululante e previsível. Aliás,esse Homem Comum, antes de qualquer coisa, é um vôo cego. Um álibi. Um álibi furadíssimo. Philip Roth apostou suas fichas mais preciosas, e ganhou bonito. Eu falhei como leitor, e falhei como resenhista. Pela primeira vez, acreditei num autor. A obra transcendeu, e isso aqui deixou de ser uma resenha para virar o depoimento de um cara que sabe que tudo não passa de uma grande mentira. E já que é assim – e se for o caso – faço questão de levar esse álibi/engodo até os últimos limites do ridículo pleno. Quero dizer que a piscina está vazia, e que eu, particularmente, vou mergulhar de cabeça. De qualquer forma, caros leitores, o convite está feito. Mas tem de ser de cabeça, vocês sabem.

Só uma última coisa. Não pensem duas vezes; na melhor das hipóteses – e se tudo der certo e não ocorrer nenhum sobressalto – todo mundo vai morrer no final.

PS – Esta resenha ficou poucos dias no ar, no site de um amigo meu. Portanto, não é inédita, mas é um complemento absolutamente necessário à crônica “Novos Decrépitos” Não podia deixar de publicá-la. E também serve como carta, a última que escrevi para o Dostoiévski do Jardim Casqueiro.
*Marcelo Mirisola, 42, é paulistano, autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô, O azul do filho morto (os três pela Editora 34), Joana a contragosto (Record), entre outros.

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