Praça Roosevelt

A lógica da franga encurralada

Marcelo Mirisola*
O psicanalista, e agora romancista Contardo Calligaris, escreve todas às quintas-feiras no jornal Folha de S. Paulo. Até que começou bem a crônica da semana passada, de 15/5 (clique
aqui). Ele estava intrigado com uma faixa no túnel Zuzu Angel, perto da favela da Rocinha. A faixa estampava: “Ronaldo, a Rocinha acredita na sua inocência, você sempre será nosso Fenômeno”. Diante disso, o psicanalista pergunta: “de que inocência se trata?”
Culpa? Crime? Inocência? Qual o problema em ir para o motel com três travecos? Nenhum. Claro que não. Se você não gostar de mulher, e não tiver um contrato de imagem com a Nike, beleza.
O problema é que Calligaris força uma aproximação de Ronaldinho com a família Hemingway, e – muito malandramente – tenta nos convencer que o autor de “O Sol também se levanta” enfiou um balaço na garganta porque teve medo de ser feliz. Igual o Ronaldinho – que não chegou a tanto.
Já o filho e o neto do escritor, segundo Calligaris, tiveram destinos diferentes. O primeiro,Gregory, virou uma espécie de arremedo de travesti, e o neto, John Hemingway contou a história da família num livro ainda não traduzido no Brasil, “Strange Tribe”.
Para Contardo Calligaris, você e eu, e o Ronaldinho, somos inocentes. Ele também é. Ou seja, da mesma forma que Ronaldinho não incorreu em nenhum crime (concordo) ele, Calligaris, também sentiu-se à vontade para fazer associações esdrúxulas e escrever um texto leviano no jornal. E já que é assim, também me sinto à vontade para dar meus pitacos, e tripudiar do psicanalista. Vou poupar Ronaldinho. Na visão de Calligaris só existe um crime: deixar de ser feliz. Ou, traduzindo para o português das padarias: ser feliz – e sobreviver à agruras da vida – é sinônimo obrigatório de soltar a franga, emboiolar. Anulam-se todos os dispositivos em contrário.
Vejam bem, não discordo completamente da tese de Calligaris. Em princípio, não. Ao contrário, faço questão de concordar para provar que ele está equivocado, e foi leviano. Digamos que o autor de “No Cais de Esmirna” era mesmo uma bichona. Diferentemente do filho, Gregory, que optou por ser travesti-ativo, o Pai escolheu um balaço na garganta. A leviandade está em afirmar que um travesti pode ser mais feliz que um suicida. Em ignorar a tragédia (ou a escolha) de um em detrimento da tragédia de outro.
Calligaris erra feio quando usa Ronaldinho como isca. Quis puxar a sardinha para o seu lado. Até aí, tudo bem. Eu também puxo a sardinha para o meu lado. Sou manipulador,e tenho minhas opiniões e adoro confundir as pessoas, e distorcer os fatos. Me divirto com isso,mas deixo muito bem claro que se trata de um artifício. Não defendo teses. Acredita quem quiser.
Olhem só o que Calligaris escreveu: “ao longo do livro, John Hemingway descobre que a estranha divisão de seu pai já estava em Ernest, o escritor, seu avô. Ernest aparece vestido de menina na infância, e há, na obra do grande escritor, passagens tocantes em que um homem e uma mulher que se amam são tentados por uma inversão de papéis pela qual o homem se tornaria mulher nos braços de sua amada”.
Para começo de conversa: John Hemingway não “descobre” nada, como diz Calligaris, apenas faz uma especulação primária. Quantos anos tinha o escritor na foto em que aparece vestido de menina? Três, quatro? Foi escolha dele ou da mãe? Por acaso tem algum crédito nessa foto que diz: “Mamãe, quando crescer vou escrever um livro chamado ‘Paris é uma festa’.Um luxo! ” ?
Pois essa é a interpretação de Calligaris.
Aí eu me pergunto: foi assim que o neto de Hemingway escapou – segundo Calligaris – da maldição que assolou a linhagem dos Hemingway? Por que reforçar a tese de que, tanto Ernest Hemingway, como Gregory, o filho travesti, sofriam de “psicose maníaco depressiva, depressões profundas e uma constante incerteza de identidade de gênero”?
O fato de John, o neto, escrever um livro em que simplesmente especula sobre a identidade sexual do pai e do avô, por acaso o afastará desses males? Explica o balaço que o avô enfiou na garganta? Então foi assim, escrevendo bobagens, que John, o neto de Hemingway, escapou da maldição da família? Calligaris acredita que sim. Eu já acho que esse sujeito, o tal do John Hemingway, não se salvou de porcaria nenhuma, ele é apenas um aproveitador, um canalha da pior espécie.
Todavia, Calligaris insiste na leviandade ao sugerir que a inversão de papéis pela qual o homem se tornaria mulher nos braços de sua amada, é algo diferente de literatura. Se fosse diferente, ele mesmo, Calligaris, no mesmo parágrafo, não chamaria Hemingway de “grande escritor”. Texto infeliz.
Calligaris usa a expressão “grande escritor” para dizer que Hemingway, como Ronaldinho, também é inocente. Que todos nós, e o Ronaldinho, estamos encurralados. Que temos que soltar a franga para alcançar a felicidade! Olha eu aqui, contaminado pela euforia de Calligaris, a fazer meu diagnóstico de beira de balcão.
Se fôssemos levar a sério a tese de Calligaris, então teríamos de acreditar que Hemingway, além de uma bichona frustrada, também era um assassino da pior espécie. Os livros dele são violentos, né? Ou que Nabokov era um pedófilo porque escreveu Lolita. Às vezes quero acreditar que não se trata de má fé. Que Contardo Calligaris é um simplório. Mas não é o caso, o psicanalista tem uma coluna na Folha de S. Paulo há um bom tempo (saudades de Carlinhos Oliveira, Nelson Rodrigues ... os escritores, onde estão os escritores?) e acaba de estrear na literatura com um romance erudito – dizem – à la Umberto Eco. Eu até ia ler o romance, mas depois dessa crônica desisti.
Seguindo a lógica da franga encurralada, o livro de Calligaris deve ser tão brilhante quanto o livro escrito por John, o neto calhorda de Hemingway. Contardo Calligaris não é um simplório. Não, de jeito nenhum. Homem viajado, Psicanalista e Doutor em psicologia clínica pela Université de Provence na França. Professor de Antropologia na Universidade da California em Berkeley (EUA), e de Estudos culturais na New School de Nova York (EUA), Calligaris não é exatamente um ingênuo. Ele sabe usar um instrumento muito do safado chamado sofisma para distorcer os fatos à sua conveniência, logo ele que desfruta da admiração de intelectuais do porte de Gerald Thomas, Reinaldo Azevedo, e Marcos Augusto Golçalves, logo Calligaris que deve entender de vinhos, e falar vários idiomas, não, ele não pode ser um simplório. Mas que foi leviano,manipulador e desonesto, foi.
Em seguida, Contardo Calligaris recorre aos lugares-comuns mais insossos a fim de especular sobre da vida de Hemingway. E dá lhe touradas, caçadas, guerras e pescarias em alto mar. E sugere que “talvez” (percebam a má-fé nesse “talvez”) “seu show de virilidade fosse uma maneira de conter a fascinação feminina”. Então, tá.
Almanaque de psicanálise para analfabetos iniciantes. Calligaris deve fazer sucesso nas creperias da Vila Madalena, e muito provavelmente vai incendiar a imaginação das balzacas na Festa de Paraty. Viva a inteligência brasileira!
Outra coisa. Eu também sou um cara subversivo pela própria natureza (será que tenho alma de travesti?), e creio que a ficção de Hemingway é... ficção. Só isso. Jamais atribuiria a criação de uma cena erótica ao erotismo. Isso é desonestidade intelectual, e falta de conhecimento literário.
A título de ilustração: o narrador do meu livro “Bangalô” (na primeira pessoa) leva um consolo no meio das pernas e “rebola gostoso”. Se Calligaris o interpretasse, na certa me acusaria de ser inocente também. O que eu tenho a dizer? Simples. Hemingway já teve leitores mais qualificados. Que é fácil dizer que Hemingway era uma bicha frustrada, difícil é escrever um livro chamado “Adeus às armas”.
O problema de Calligaris é que eu não me matei, nem virei travesti. Nem pretendo, ainda não. Digo, parar de escrever. Portanto, estou aqui para dizer aos aspirantes a escritor, incluindo Contardo Calligaris, que boa literatura não é sintoma, e não é uma questão de ordem sexual.
Ou será que Contardo Calligaris escreveu esse monte de bobagens porque, nos meandros do seu inconsciente de almanaque, queria ser desnudado em sua má-fé, e depois ser possuído – “possuído” é bom hein? – em público por um justiceiro literário? Se foi isso, conseguiu.
* Marcelo Mirisola, 42, é paulistano, autor de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô, O azul do filho morto (os três pela Editora 34), Joana a contragosto (Record), entre outros. Publica em revistas, sites e jornais de todo país. Mora na Praça Roosevelt, perto do Sebo do Bactéria.

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