Crônica



Improvisando

Um provérbio popular me veio à cabeça naquele dia longínquo da década de 1980, para ser mais preciso corria o ano santo de 1985. Quem não tem cão caça com gato. Quem não ouviu tal aforismo ao longo da vida? Pois foi algo parecido que ocorreu a um simpaticíssimo senhor caiçara da Ilhabela no dia ao qual me referi no início deste texto.
Primeiramente devo me apresentar, sou médico, meu nome é Ricardo Cortes e eu estava de plantão na Santa Casa de Ilhabela em um dia calmo do mês de maio, quando quase não há turistas e as noites são estreladas e frias. Pouco movimento, situação ideal para ler um livro policial, especialmente para mim que sou legista.
Eu estava em meu consultório e em certo momento a leitura foi interrompida por uma enfermeira que bateu à porta e entrou com uma ficha na mão:
- Um caso especial para o senhor, doutor. Dor de dente.

Fechei o livro e fiz a pergunta óbvia:
- Não tem dentista na cidade?
- Tem, mas é particular. O paciente é pobre. É melhor o senhor dar uma olhada, o homem está chorando.
Mandei que entrasse. Era um homem de sessenta e poucos anos transtornado de dor, com a cabeça entre as mãos, acompanhado da mulher muito assustada e bem mais jovem.
Examinei o dente, um canino, na boca só havia ele e o outro canino, um vazio desolador. Estava inflamado. Expliquei ao homem que eu ia dar um analgésico para tirar a dor e que ele procurasse um dentista. Não devo ter sido convincente, ele implorou pelo boticão, com tanta veemência que acabei concordando. Tirei o dente e ele foi-se embora satisfeito.
Voltei ao livro e quando me preparava para um cochilo fui novamente chamado a atender o mesmo homem. Seu Siqueira, agora meu conhecido. Meio que assoviando com a boca torta ele me disse:
- O senhor precisa me fazer um favor doutor. Tirar o dente que sobrou. Estou muito feio com um dente só, minha mulher ficou rindo de mim, ainda está rindo. Por favor doutor, depois eu mando fazer uma chapa.
O homem era convincente e teimoso e como um dente só é como uma andorinha sozinha que não faz verão, tirei o último dos moicanos. Ele saiu do hospital feliz, elogiando minha mão leve.
Voltei ao consultório e ainda consegui ler o final de “Bufo & Spallanzani”, de Rubem Fonseca, antes de dormir. Naquela noite o plantão foi tranqüilo, ninguém mais precisou de atendimento médico. Ou odontológico.
Na manhã seguinte, quando meu horário estava para terminar surgiu em minha frente o velho conhecido seu Siqueira, acompanhado da mulher e de quatro crianças. Assustadas, pois estavam lá para tratar os dentes comigo. Segundo seu Siqueira um ótimo dentista:

- Arranca sem dor. E sem muita conversa.

Ricardo Cortes

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