Crônica


Arquivo pessoal/Chris McCandless

Dez dias no Sítio do Napão

Marcelo Mirisola*
A pergunta não é “Quem tirou aquela foto?” O ideal seria perguntar: “Quem era aquela cara atrás da foto?”. O cara que me fez lembrar de mim mesmo exatamente naquela época da minha vida, ele isolado no Alasca, enfiado num ônibus mágico e dentro da Natureza Selvagem, e eu, apenas dois anos mais velho em 1991, naquela noite calma, preparando a balsa para ir tarrafear na ilha de João Cunha, em Porto Belo (SC). De uma coisa, eu sei: estávamos em margens opostas e, entre nós, havia um rio impossível de atravessar. Ele numa margem, e eu na outra.
“Na natureza selvagem”, a história de Chris McCandless, escrita por Jon Krakauer, e agora filmada por Sean Penn, me fez pensar em coincidências e isolamento, e me fez separar esses dois sentimentos do principal: que é a procura. Entendi que Chris McCandless não estava perdido naquele fim de mundo, porque procurava a si mesmo; e, para ele, não havia opção diferente de sair da própria vida, e da vida dos outros, não havia outro jeito “atrás da foto” senão se isolar, ir embora. Portanto, coincidência nenhuma. Apenas necessidades.
Foi com esse espírito que liguei pro Napão, e disse: vou ficar uns dez dias no seu sítio. Sozinho, claro que sim. Em princípio, esses dez dias poderiam durar o resto dos meus quarenta e dois anos – pensei nisso e no semblante feliz e barbudo de McCandless “atrás da foto” defronte seu ônibus mágico (antes de eu mesmo apagar no ônibus que me levava a São José dos Campos): e, meio que adormecido, tentava sincronizar minha respiração com a possibilidade de um acidente robusto na Via Dutra, tipo colisão frontal. Mas, além disso, também desejei toda luz do lago duro e prisioneiro de um Antonio Maria; queria ter a oportunidade, depois de ter virado carne moída, de encontrar McCandless na outra margem do rio, talvez num lusco-fusco parecido com aquele de 1991. Um ano especialmente triste para mim: de inverno chuvoso – de frente para o mar, uns quinze metros da arrebentação – Billie Holliday no toca-fitas e café na espiriteira. Eu era vizinho do cemitério branco, lembro.
Entendi uma coisa. Sair da vida dos outros é um exercício que a estrada impõe a caras como McCandless. Uma etapa que vem antes de sair da própria vida. Daí a felicidade e a tristeza de seguir em frente. Antes do pecado, antes de qualquer coisa – antes e depois do olhar – Sodoma e Gomorra (para ficar num exemplo ululante) nunca foram cidades, mas eram, foram, e serão principalmente lembranças. Era por isso (ou disso) que McCandless sorria naquela foto – um sorriso selvagem de quem, em primeiro lugar, sabia-se herdeiro de uma memória de outras memórias. Depois, o sorriso de quem lançava essa memória – junto com suas lembranças mais comezinhas – para o além. Vejam o filme. Na última cena, o verdadeiro McCandless aparece na foto a que me referi, íntegro. Ele havia conseguido vislumbrar a eternidade.
Voltando a São Francisco Xavier, que é vizinho de Monteiro Lobato. No começo, o arraial servia de passagem e pouso para tropeiros que vinham de Minas Gerais para São Paulo, e vice-versa. Desde sempre permaneceu encravado na Serra da Mantiqueira, distrito de São José dos Campos. O lugar faz parte da Bacia Hidrográfica do Rio Paraíba do Sul, por isso é considerado área de Proteção Ambiental Federal. Ótimo lugar para criar trutas, e crianças. Em pouco tempo – de carro – pelas estradas de chão batido, você pode alcançar Joanópolis, Campos do Jordão, Gonçalves e Monte Verde, já em Minas Gerais.
Um bocado incômodo constatar – sobretudo depois de o sujeito ter se instalado na neblina – que São Francisco Xavier é muito perto de São Paulo. Como pode? Coisa de 120 km das churrascarias e motéis da marginal do Tietê, vizinho de paralisações monstruosas e de vias respiratórias congestionadas e sinusites renitentes, um lugar como esse: onde os humores da neblina pairam sobre o peso dos dias, como se esse peso não existisse, nem os dias, como se pudéssemos ser (ou exercer) o devir e, ao mesmo tempo, usufruir da nossa condição de futura transparência. Isto é, como se pudéssemos desfrutar da nossa condição póstuma de fantasmas, porém livres, suspensos de nós mesmos... enfim, estou falando de sair da gravidade, tanto faz se você estiver morto ou for um passarinho – o que vale que é que nesse lugar existe o pressuposto de ser levado pelas correntes de ar, pelas chuvas e conforme as estações do ano. Apesar da proximidade de São Paulo...
Zé Minduim, o caseiro do Napão, é que foi me resgatar na padaria da pracinha. Ele chegou montado numa CG 125. Disse que se eu quisesse poderia chamá-lo de Bin Laden ou de José Benedito da Silva. Preferi simplesmente chamá-lo de Zé, para me acostumar com a idéia.
O mochilão que eu carregava devia pesar uns quinze quilos. Era minha primeira vez de mochila nas costas. Também nunca havia andado na garupa de uma CG pilotada por Bin Laden em pessoa, e chovia muito. A gente, digo, eu e meus fantasmas constipados, precisávamos mesmo ter dado o pinote de São Paulo. Não agüentávamos mais um dia de Pça. Roosevelt, nem agüentávamos mais aquela boiada na linha de nossa alquebrada e corrompida metafísica, entende Zé?
Para ser fantasma precisa-se um mínimo de leveza, porra.
Depois de oito quilômetros na garupa do Zé Minduim, serra acima, senti dor em músculos esquecidos, panturrilha e virilha gritavam. Era como se eu me tornasse refém desses músculos: porém me resignei a trocar os sentimentos de lugar, e me dei por satisfeito por sentir apenas a felicidade da dor, e a chuva gelada que batia com violência em meu rosto. Pensei: só me falta uma BMW com banco de couro para virar um monge-zen.
Zé Minduim alertava: “Vem mais pra frente senão a moto empina”. Foi constrangedor encoxar Bin Laden, digo, Zé Minduim. Eles, Zé e Bin Laden, também não se sentiram muito a vontade e, na última venda antes da subida mais íngreme, faltando ainda uns quatro quilômetros pra chegar ao sítio do Napão, resolvemos parar, e tomamos cada um dois copões de Velho Barreiro com Vermute Montini.


Sítio São Jorge, ou Sítio do Napão.

Sem telefone, nem internet, apenas a confusão da chegada e algumas lembranças querendo atravessar essa confusão, neblina, silêncio e frio na Serra.
Quase uma hora da tarde quando o Zé Minduim foi embora. Eu ainda trazia a gripe e a sinusite de São Paulo. Estava muito cansado. Ele disse que ia aparecer no outro dia, de manhã, para ver como é que “iam” as coisas. Agradeci entorpecido ao Zé Minduim,troquei a roupa encharcada e tombei no sofá à beira da lareira, na diagonal.
Dormi uma tarde e uma noite inteiras. Na manhã do dia seguinte, acordei com o Zé batendo na vidraça. Trouxe cobertor, lenha, uma peça de toucinho e outra de queijo meia-cura, café e um telefone celular que dispensei no ato. Valeu, Zé. Não vou precisar de telefone, fica tranqüilo. Qualquer coisa, faço o Sinal da Cruz. Combinamos que ele não cortaria a grama nos próximos dias, e que eu, além do celular, dispensaria a piscina, a sauna e as cachoeiras do sítio. Também dispensei a televisão por satélite. Daí que o Zé Minduim, diante de todas minhas recusas, sacou uma garrafa de cachaça da algibeira, e intimou: “Essa o patrão não vai recusar!”.
Claro que não, Zé. Brindamos ao Napão. Como eu podia recusar?
O sítio São Jorge, ou o sítio do Napão, é quase perfeito. Um spa. Só fica devendo uma churrasqueira decente e um forno de pizza. Uma vez eu escrevi algo assim: “a distância – quero dizer: mantê-la – é sobretudo um aperfeiçoamento da solidão” (Bangalô). Acho que estava certo. Sobre isso – e sobre outras faltas – que sinceramente já não me pesam como antes (não depois de eu ter passado dez dias em São Francisco Xavier), pretendo discorrer na segunda parte dessa crônica. Acertei com o Napão de ficar mais dez dias: domingo é dia de missa, e de Lan House. Boa Páscoa a todos, e até a próxima semana.


PS: Muita gente tem me perguntado sobre o “Proibidão”. O livro é vendido exclusivamente no Sebo do Bactéria, Pça. Roosevelt, 124, de terça a domingo a partir das 19 horas. Ou no site dele (para todo o Brasil):
www.sebodobac.com.
*Marcelo Mirisola, 41, é paulistano, autor de O herói devolvido, Bangalô, O azul do filho morto (os três pela Editora 34), Joana a contragosto (Record), entre outros. Publica em revistas, sites e jornais de todo país. No prelo, Proibidão (Editora Demônio Negro).

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