Reminiscências

Dezembro / 1954

Seu Armando passava de um lado para o outro. As pessoas entravam e saiam das casas, uma de cada vez. Parecia a hola. Com os olhos arregalados e os punhos fechados seu Armando bufava como um trem da Central, olhando fixamente para frente. A ambulância do Samdu estacionou, quatro homens desceram e apanharam muito até vestir a camisa de força e embarcar seu Armando. Fomos visitá-lo. A rua inteira. Alugaram um ônibus. No corredor do hospital psiquiátrico os doentes corriam como loucos. Enquanto as mulheres distribuíam tortas, frangos e doces pelas mesas, fui dar uma volta. Na capela uma senhora morta era velada. Parentes me disseram que ela contraiu a doença fatal na época em que ainda estava viva. Logo em frente ao velório, no auditório principal, uma placa anunciava para breve a conferência sobre prisão de ventre. Seria seguida por um farto almoço. Fiquei extasiado com o quadro que cobria a parede do átrio. Bela obra, de onde parecia exalar toda a fria tristeza da estepe gelada, executada com um calor magistral. Continuando a caminhada, parei perto do senhor baixinho que apregoava:
- Depois de muita luta de nossa parte a água corrente foi finalmente instalada no cemitério, para satisfação dos habitantes. Um dos ouvintes replicou:
- Essa nova terapia traz esperanças a todos aqueles que morrem de câncer a cada ano.
Como o tempo começasse a esquentar achei melhor sair de fininho. Foi um passeio interessante e instrutivo, apenas a volta complicou um pouco. Eu não levei agasalho e apesar de a meteorologia estar em greve, o tempo esfriou intensamente. Na saída um grupo de sete cantores encantou a todos, um trio de talento. Acabamos tendo de voltar de trem, dentro do ônibus foi encontrado um tronco proveniente de um corpo cortado em pedaços. Segundo o delegado de plantão, tudo indicava que fizesse parte das pernas achadas na semana anterior.
Seu Armando voltou conosco e ficou calmo durante meses até morder a orelha do tintureiro. Dessa vez ele foi internado e depois que saiu, mudou-se para Maracangalha, de onde nunca voltou. Quem sabe tenha encontrado a Nália. Ou tenha ficado só. (Publicado originalmente em dezembro de 2006)

Sidney Borges

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