Crônica natalina

Em família

Os rubis dos relógios servem para evitar o desgaste de eixos metálicos girando sobre bases também metálicas. A colocação das pedras aumenta a vida útil e encarece as máquinas de medir o tempo. Quem já viu propagandas de antigamente, certamente reparou na ênfase aos rubis. Quanto mais, melhor. Nos anos da década de 1950 o mercado de relógios estava aquecido e logo surgiram imitações. Omega, Cyma, Tissot, Rolex e outras marcas, que não me vêm à cabeça eram vendidas por camelôs. Os clones eram iguais na aparência, mas no interior não havia rubis. Metal atritando em metal gera calor e desgaste. Em pouco tempo a jóia preciosa, comprada a preço de banana, abria o bico, começava a atrasar e o diagnóstico do relojoeiro era definitivo. Não tem conserto esse é um relógio “sistema”, sem rubis. Foi assim que ganhei o “Canhoteiro”, originalmente a tampa de um Omega que o meu avô comprou e jogou fora. Pintei com esmalte de unha e ele se tornou o melhor batedor de faltas da minha curta e vitoriosa carreira de botonista. A compra desse relógio foi uma das primeiras batalhas que travei com meu avô, bom homem, mas teimoso como uma centena de mulas empacadas em série. Ou em paralelo, dá no mesmo. Tudo começou com o florescimento de uma paixão e com ela a minha estréia na carreira de estafeta, que abandonei em tenra idade. João viu Adalgisa, Adalgisa fingiu que não viu João. No outro dia exatamente na hora em que João passou distribuindo correspondência, Adalgisa escolhia frutas na carroça do seu Amadeu. É mais polido fazer as apresentações. Adalgisa era uma moça muito bonita, cor de canela, que trabalhava como empregada da família Marçal, nossos vizinhos. João foi flechado por cupido, enamorou-se e me pediu que intercedesse. Nessa época eu estava ocupado construindo um avião, mas jamais negaria ajuda a um amigo, João era do peito. Levei um bilhetinho e trouxe outro. Depois de algumas semanas de árduo vai e vem o namoro começou e em três meses acabou. Em casamento. Adalgisa mudou-se feliz, como é possível alguém ser feliz, para o cômodo e cozinha que João construiu nos fundos da casa do pai. Eu ganhei a gratidão eterna do meu amigo, que passou a me presentear todos os meses com um exemplar de Seleções do Reader’s Digest. O pessoal da conceituada revista era um pouco atrapalhado. Quando um assinante mudava de endereço a revista era enviada para o endereço novo e para o antigo, demorava anos para que percebessem o engano. João tinha três ou quatro revistas nessa situação e uma passou a ser minha. Em tempo, nessa época eu estava no segundo ano primário, aluno da Dona Maura, uma moreninha de 19 anos que fazia com que os pais largassem qualquer coisa para buscar os filhos na escola. Um fenômeno, os alunos das outras professoras iam para casa com as mães, que fuzilavam dona Maura com os olhos. A nova fonte de conhecimento me fez saber dos relógios falsificados, com fotografias e dicas para identificar o gato e não comprá-lo por lebre. Naquela noite eu comentei no jantar sobre a falta dos rubis, minha mãe me olhou com admiração e perguntou se eu queria mais espinafre. Dias depois fui com meu avô pagar uma conta na cidade. Na Praça Clóvis, enquanto esperávamos o ônibus, um homem se aproximou e cochichou no ouvido do meu avô. Depois tirou um relógio do bolso e passou a falar das qualidades do produto. Logo outro homem se acercou e pediu para examinar a jóia. Aprovou na hora, tirou a carteira e pagou. Meu avô entrou na onda. Cutuquei o braço dele, mas nada ia demovê-lo. A intenção de compra estava estabelecida em sua alma. Pedi para ver o outro relógio que surgira nas mãos do vendedor. Todas as indicações estavam lá, era “sistema”, falso, imitação. Tentei argumentar, o homem me elogiou, menino esperto, mas olhe aqui, está escrito Omega. É a prova de que não é falso. Pode comprar. Assim ganhei o Canhoteiro, que encobria goleiros e me fez ganhar partidas dificílimas. Naquele Natal minha avó ficou com pena e deu um Omega de ouro para meu avô. Na hora da entrega dos presentes ele me chamou de lado e pediu para que examinasse o relógio. Era bonito, eu não sabia como identificar os verdadeiros. Pela falta de indícios e pelo brilho concluí pela autenticidade. Ele ficou feliz. Tomamos champanhe para comemorar. Só um pouquinho, para sentir as bolhinhas na língua. Meu avô não bebia, eu também não bebo. Foi um natal inesquecível.

Sidney Borges

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