Deu no Estadão

O sagrado direito de se cansar

João Mellão Neto
Declarar-se cansado, no Brasil, agora é crime? Trai a Pátria aquele que ousa declarar-se inconformado com os desígnios de seu líder? Mais do que isso. Segundo a cartilha lulista, quem não está de acordo com os rumos do governo é um verme que nem sequer deve ser levado em conta. Não vou aderir ao movimento 'Cansei'. Até por que não estou cansado de nada. Tenho criticado o lulismo, nesta página, há mais de 20 anos e continuarei a fazê-lo sempre que isso se mostrar necessário. Não é porque, a meu ver, os petistas estejam sempre errados, e sim porque, na sua ideologia, por mais que errem, eles se julgam sempre certos.
O movimento 'Cansei', vá lá, tem as suas falhas. A começar pelo nome. 'Basta!', por exemplo, denotaria um inconformismo e uma combatividade muito maiores. 'Cansei' demonstra enfado, um sentimento blasé de quem se enjoou do brinquedo e não pretende usá-lo mais. Ora, não é esta a disposição daqueles que se recusaram a votar em Lula, ao menos em São Paulo. Nós não nos 'cansamos' de Lula. Fomos contrários a ele desde o início, não pela sua pessoa, mas por tudo aquilo que ela representa: populismo, assistencialismo, clientelismo e até mesmo corrupção. Isso sem falar na notória incompetência administrativa de seus apadrinhados, guindados a cargos de direção por critérios exclusivamente ideológicos. As trapalhadas dessa gente, somadas, custam ao Brasil bem mais do que todas as práticas corruptas imagináveis.
Por ocasião de uma das eleições presidenciais que Lula perdeu (foram três), eu me recordo de ter escrito que a sua profissão de fé no marxismo era apenas de fachada. Ele era (e é) um fenômeno de massas e necessitava de algum embasamento doutrinário no qual se lastrear. Ao adotar os preceitos do socialismo-comunismo, no início da década de 1980, ele conquistou o apoio de boa parte da Igreja Católica e também o respeito dos setores ditos progressistas da intelectualidade universitária. Não o tivesse feito, seu futuro seria o mesmo de tantos aventureiros de palanque que, apesar de lograrem mobilizar as massas, têm vida curta por falta de conteúdo e consistência ideológica. Lula, intuitivamente, fez a opção correta. Evidência disso é que, mesmo perdendo três eleições, nunca lhe faltou um aguerrido e significante contingente de militantes.
Mas, depois de 1989, com a queda do Muro de Berlim e a derrocada do comunismo, ele não poderia mais valer-se dos preceitos marxistas para governar. Para contentar os seus adeptos somente lhe restariam um governo altamente voltado para o social, uma política externa com traços marcadamente terceiro-mundistas e a ocupação da máquina administrativa pela intelectualidade (desde os meus tempos de faculdade tenho notado o inusitado fascínio que grande parte dos mestres nutre pelo poder...).

Eram palavras proféticas. Lula, presidente, sabe que não pode mexer impunemente nos fundamentos econômicos. A economia está internacionalizada como nunca antes, os capitais cruzam o planeta em volumes e velocidades alucinantes, o potencial de risco de se aplicar dinheiro em cada país é cotado diariamente e qualquer medida voluntarista que o governo tome pode levar à sua ruína no dia seguinte. Lula compensa essa impotência econômica com uma política exterior em que não perde chances de reiterar a sua independência e mantém a sua militância pacificada com a distribuição maciça de cargos públicos.
O governo Lula, a rigor, não tem um projeto. Todas as políticas sociais que, antes de sua primeira eleição, pretendia levar a cabo ou fracassaram por completo ou deixaram muito a desejar.
O Bolsa-Família foi uma grata e imprevista surpresa. Não estava nos planos de Lula e sua equipe. Ao constatar que os programas Bolsa-Escola, Bolsa-Saúde e Vale-Gás, todos implantados na gestão FHC, funcionavam a contento, decidiu unificá-los e ampliar o seu alcance, de forma que, hoje, ele beneficia cerca de 25% da população brasileira.
Não, eu não me 'cansei' de Lula. Cansar implica deixar de gostar de algo ou alguém que antes nos atraía. Eu, pessoalmente, nunca gostei da figura pública de Lula, do que ele representa ou representou, da mesma forma que nunca acreditei na sua capacidade de resolver os problemas do Brasil.
Lula não fez nem pretende fazer nenhuma reforma de vulto. Se a economia no seu governo vai bem, isso se deve a uma conjuntura internacional nunca antes tão favorável. Evidência disso é que todos os países emergentes apresentam excelente desempenho.
O legado de Lula para a História? No que tange a ele, a agradável surpresa de constatar que o voto e o apoio dos pobres saem muito mais baratos do que se imaginava. Com um dispêndio a fundo perdido de apenas R$ 8 bilhões - uma parcela ínfima do orçamento da União - é possível pagar mesadas a mais de 11 milhões de famílias, garantindo assim uma máquina eleitoral invencível.

No que tange à Nação, o problema é mais complexo e de conseqüências imprevisíveis. O esforço de todas as nações, desde os bancos escolares, de incutir nos jovens a ética do trabalho, aqui, no Brasil, foi dispensado sem o menor escrúpulo. Graças ao Bolsa-Família, os mais pobres descobriram que, se não tiverem grandes ambições, podem perfeitamente passar a vida sem trabalhar, recebendo apenas o dinheiro que o governo lhes garante.
'Cansei', desabafam alguns. 'Basta!', insisto eu. Há, no mundo, nações que cresceram pela guerra, outras que se desenvolveram graças ao trabalho e, mais recentemente, há aquelas que se agigantaram pelo ensino. Mas não há registro na História de uma nação que tenha evoluído com base na esmola.
João Mellão Neto, jornalista, deputado estadual, foi deputado federal, secretário e ministro de Estado.
Fax: (11) 3845 1794
j.mellao@uol.com.br

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