Ubatuba em foco

Praia Grande: o que não vem à tona e quem lucra com isto?

"Um homem luta muito mais por seus interesses do que pelos seus direitos"
Napoleão Bonaparte


Marcelo Mungioli*
Ubatuba é um município atípico. Com mais de 70% de sua área comprometida com áreas de preservação ambiental permanente, não teve ainda uma política de planejamento que aproveitasse tal situação. As faltas de planejamento e de fiscalização permitiram a ocorrência de verdadeiros descalabros, que se refletem nos dias de hoje, na caótica situação financeira e social vivida por que aqui reside.


PROGRESSO VERSUS PRESERVACIONISMO
Cicillo Mattarazo é, até hoje, um ícone no planejamento urbano em Ubatuba. É de sua época a Lei 144/1968, que implantou o primeiro Plano Diretor Municipal, que traçou as diretrizes de crescimento do município. Previa loteamentos com ruas de 14 metros e avenidas de 20 metros, o que era considerado um absurdo na época. O arquiteto Roberto Rezende, em depoimento sobre este assunto em meu livro, “A História do Comércio em Ubatuba“, explicou: “As pessoas não conseguiam prever o que seria Ubatuba, no futuro. Nesta época, Ubatuba era a última cidade do Estado de São Paulo. Só com a chegada da Rio Santos, em 1972, é que se começou a apostar em um futuro para o município”.
Estudando a nossa legislação, vamos nos deparar com a Lei 474/1974, que começou a dimensionar Ubatuba. Esta lei visava dar ao município uma mínima proteção ambiental. Eram tempos anteriores ao Parque Estadual, mas esta lei já previa a ocupação de áreas de preservação permanente (em até 50%), além de permitir construções a cinco metros de qualquer curso d´agua. Estabelecia o gabarito de três pavimentos para a construção de prédios e previa a ocupação de 40% da área de um lote pela edificação.
Em 1981, foi aprovada a Lei 630, seguindo as diretrizes da Lei 474. Em 1984, foi sancionada a Lei 711, que está em vigência até hoje, disciplinando o uso e ocupação do solo no município. Estas Leis foram intituladas planos diretores, mas na verdade, regulavam apenas o uso e ocupação do solo.


PRAIA GRANDE: FALTOU PLANEJAMENTO E GESTÃO
A Praia Grande pode servir de exemplo para demonstrarmos a falta de planejamento e gestão, que perpassa a afasia do poder público, a ganância do empresariado e o desrespeito aos princípios mínimos do direito por parte de muitos.
Com a explosão do mercado imobiliário, principalmente durante o Plano Real (1994 a 1997), com a chegada de vários empreendedores de fora do município, a Praia Grande passou pelo seu período de maior degradação.
Nesta fase, empreendimentos de todos os padrões passaram a ser lançados no local, sem o mínimo cuidado ou estrutura, no afã de multiplicar capital.
Permitiu-se de tudo, menos a verticalização, mantendo-se um teto de pilotis mais quatro andares.


A FASES DE OCUPAÇÃO DA PRAIA GRANDE
A falta de fiscalização e controle, por parte do Executivo, marca todas as fases de ocupação da Praia Grande: Na primeira fase de ocupação da praia Grande, ainda na década de 80, tem como marco o o jardim Praia do Sol, um loteamento que deveria ser totalmente residencial. Mesmo assim, ao arrepio da lei, vários proprietários alugavam seus imóveis, adaptando-os para pousadas.
No meio da Praia Grande, aconteceu o segundo momento da ocupação do bairro. O local é hoje um corredor comercial e considerado pelos corretores imobiliários, o ponto de maior índice de locação daquela praia, referido ainda como um excelente investimento em imóveis. Ter um imóvel na Praia Grande, naquele ponto é extremamente rentável como uma aplicação segura, com um bom retorno de renda, segundo várias imobiliárias consultadas.
No canto de subida para as Toninhas, recentemente ocupado, estão localizados os prédios mais valorizados, os grandes condomínios, com apartamentos cotados em centenas de milhares de dólares. Esta é fase atual da Praia Grande.
E foi exatamente nesta fase, dos empreendimentos milionários, que surgiu o questionamento sobre a legalidade dos quiosques naquela praia. A pergunta que não quer calar: quanto vale a vista destes edifícios se forem retirados os quiosques? Será que o preço destes imóveis não dobrará?
É preciso também lembrar que a ocupação da Praia Grande pela construção civil foi feita sem que a questão do saneamento básico fosse sequer discutida. Os prédios tinham fossa ou ligações clandestinas, despejando esgoto in natura no rio Grande. Na alta temporada, os caminhões limpa fossa não paravam. Quem estava por aqui no início dos anos 1990 lembra bem desta situação...
Foi a iniciativa privada, com o empenho empreendedor da Associação de Bairro do Jardim do Sol, através de uma cooperativa de saneamento, idealizada pelo Sr. Cleber (conforme conta o engenheiro Resende, mas acreditamos que devemos dar créditos também para o Sr. Alvaro), que colocou as mãos na massa e concretizou o primeiro sistema coletor de esgotos, que não contou com a participação de todos os prédios da região, mas minorou – sobremaneira – o impacto ambiental nas praias do Grande e do Itaguá.


E QUEM FREQUENTA A PRAIA GRANDE?
Conversando com vários corretores de imóveis, procuramos entender o que motivou a especulação imobiliária que varreu o bairro. A resposta: a partir do ano 2000, a Praia Grande passou a ser vista como um grande mercado para locações.
Segundo a corretora Sidneia Giroud, a compra de imóveis na praia Grande é realizada, em sua maioria, por investidores e turistas: “Segundo dados apresentados do setor, mais de 95% dos apartamentos vendidos na Praia Grande são para investimento, para locação”, diz Sidneia, que ainda complementa: “As características da praia Grande são as mesmas dos grandes balneários: população sazonal, sem ligação cultural com o município, que utiliza o local como lazer”.
E nesse contexto que se inserem os quiosques da Praia Grande: para receber exatamente esta demanda turística específica, atendendo, de forma satisfatória este público que nos visita e que quer apenas – e tão somente – diversão barata.


O X DA QUESTÃO
Ora, esta diversão barata, ruidosa, festiva e desorganizada vai entrar em conflito direto com os recentes empreendimentos de R$ 1 milhão! Mas este conflito ocorre por falta de uma política de fiscalização e de ordenamento urbano. Quando na praia impera a desordem, quase o caos, entra em cena um pensamento que chega a beirar o preconceito: o grande vilão do caos da Praia Grande é o turismo popular! Como este pensamento – apesar de errôneo – é fortalecido a cada temporada pelos problemas estruturais que a municipalidade não preocupa-se em resolver (ambulantes, lixo estacionamentos, nó no trânsito e urbanização). Este pensamento elitista, torto, torna-se peça de resistência no discurso para os grandes investidores, que sonham ver a praia Grande livre da população menos favorecida. Só que a Praia Grande, muito antes dos edifícios de luxo, sempre foi a praia mais popular de Ubatuba. A Praia Grande é referência de festa, de alegria, de descontração. Como em todos os lugares, de Copacabana, Barra da Tijuca ao Guarujá, aos poucos, a Praia Grande foi deixando de ser in, vip, passando a ser a principal praia para o “povão”, que vai para lá passar o dia. Não dá mais para sonhar com o tempo em que, ao invés dos prédios, havia apenas o areal e os bondes (esta talvez a paisagem congelada na memória por muitos).
No caso dos quiosques misturam-se ingredientes explosivos: de um lado, permissionários que se consideram proprietários, que acreditam que podem fazer verdadeiros restaurantes à beira mar, sem dar satisfações a ninguém e do outro, os empresários do setor imobiliário, que querem livrar-se da poluição visual e da desorganização causada pelo movimento do turismo popular, que é o público prioritário dos quiosques.


A PRAIA GRANDE – HOJE – É RUÍNA!
Mas como resolver este conflito, se a Praia Grande, há muito tempo, é a praia idílica na mente dos turistas populares? É só raciocinar: Ubatuba não conservou seus monumentos históricos e não oferece opções culturais. Os nossos visitantes – que em sua grande maioria frequenta a Praia Grande – tem o mesmo perfil identificado em todos os grande balneários: querem mesmo é beber uma cervejinha, tomar um banho de mar e fazer a bagunça deles. E qual o local eleito para isto: A Praia Grande! Foi lá que encontravam o melhor espaço para suas manifestações esfuziantes, uma Porto Seguro paulista: havia pagode nos quiosques, os carros ficavam com o som nas alturas tocando axé ou música sertaneja e – como diria Jurabelo, o radialista da Costa Azul – “que venha sol” e muita, muita cerveja. No final do dia, para completar, ainda havia o congestionamento na saída da praia!
Hoje, infelizmente, a Praia Grande é ruína: um sem número de quiosques interditados por ordem judicial (os que estavam realizando obras consideradas irregulares), outro tanto perigando parar por embargos administrativos (os que realizaram as obras consideradas irregulares e acabaram ficando fora da ação judicial) e não há nenhuma solução em curso . O turista ao deparar com este quadro, não entende nada. Ele, que veio para a “farra”, para divertir-se da maneira que estava acostumado a se divertir em Ubatuba, com cerveja, sol e muito barulho, acaba fazendo suas adaptações e tudo bem.
Não tem banheiro público ou há poucos sanitários na praia? Irão urinar nos muros dos condomínios de luxo! Não pode ter música ou qualquer tipo de evento na praia ou nos quiosques? Tudo bem, improvisam uma batucada! Os quiosques estão fechados? Melhor ainda, trazem isopores e a cerveja de casa!
O que acaba sobrando para Ubatuba? Nem a caixinha dos atendentes ou o dinheiro da cerveja. Apenas a degradação e sujeira. Bem, se você for catador de latinha...


O QUE NÃO VEM À TONA
Longe de querer defender - ou atacar - qualquer uma das partes envolvidas neste conflito de interesses, é importante esclarecer que como fiel da balança, deveriam estar a Prefeitura, esta para fiscalizar e equacionar estas questões e a Câmara dos Vereadores, atenta em sua função de criar instrumentos legais para que estas situações fossem resolvidas a contento.
É o que se espera do Executivo e do Legislativo: ações isentas, em prol do interesse comum, de todos os munícipes, respeitando-se a hierarquia das leis e os princípios do direito administrativo.
Mas, com a ausência de fiscalização do Executivo e com a edição de leis locais, no mínimo, contraditórias, acabou-se criando uma atmosfera permissiva, onde permissionários e construtores querem ter razão e se julgam acima de qualquer lei. Para comprovar, estão as dezenas de modificações nas leis 711/84 e 840/86, que regem – respectivamente - a construção civil e os módulos de praia (quiosques), muitas delas legislando de forma inconstitucional, na direção contrária a pareceres jurídicos, alterando regras básicas do direito administrativo como, por exemplo, permitindo a compra e venda de permissões de uso ou desfigurando a relação direta do permissionário com o objeto da permissão, criando a figura de um “gestor” para o quiosque! Na construção civil, também há casos, no mínimo, estranhos, como a diminuição na correlação entre áreas livres e construídas, e alterações de gabarito, onde são divulgadas as ementas apenas com termos técnicos e sem a apresentação de anexos, não tendo a maioria da população – e talvez até alguns dos vereadores – o real conhecimento da matéria que está sendo votada.
Em autêntico jogo de faz de conta, relatórios de impacto ambiental e estudos técnicos independentes não são solicitados e, quando o são, acabam sendo ignorados. Audiências públicas acontecem sem que se siga um rito que permita a verdadeira participação dos interessados. E é nessa vertente que parece haver a maior contradição:


LICITAÇÃO OU CONFLITO DE NORMAS?
Na luta que se trava judicialmente, conhecida entidade que atua na defesa da coisa pública e do meio ambiente, acaba levando a reboque, como beneficiários, ainda que indiretos, construtores e incorporadores da Praia Grande. A ação em andamento mira apenas os permissionários, apontando para os quiosques como se fossem o câncer que deve ser extirpado da Praia Grande.. Infelizmente, a discussão é muito mais ampla e ainda mais complexa e precisa, necessariamente, enfeixar todas as mazelas conhecidas daquele bairro (entre elas: urbanização, estacionamento, ambulantes, segurança, esgoto, lixo, altura dos prédios e distâncias entre os mesmos, além da ventilação e luminosidade) e deve perspassar, também, pela falta de conscientização da nossa sociedade e de seus representantes, de que as leis devem ser elaboradas, votadas e sancionadas apenas quando forem do interesse de toda a população.
Na questão específica dos quiosques, ainda há tempo de resolver, mas, alguém se habilita? Termos de ajuste de conduta já foram apresentados, mas esbarram no entendimento de alguns permissionários de que teriam direitos adquiridos sobre as permissões adquiridas (este entendimento, pode ter sido gerado por uma interpretação extensiva das leis municipais 1092/91 e 1199/93, uma vez que as mesma permitem a transferência onerosa das permissões para terceiros, descaraterizando o conceito de permissão) e , não aceitando a proposta de realização de licitação, mesmo estando esta prevista no art. 4°, parágrafo 6° da Lei 840/1986. No entendimento de alguns permissionários, a legislação municipal, que lhes é desfavorável, estaria sobreposta à federal, uma vez que tiveram que obter licenças junto ao Patrimônio da União, o que lhes permitiria continuar operando, gerando – segundo eles - um conflito de normas.
Para encerrar, fica a pergunta: no atual estado em que se encontra a Praia Grande, com a invasão de ilegais (ambulantes e carrinhos), quem lucra com isto? O que acaba sobrando para Ubatuba? Nem a caixinha dos atendentes ou o dinheiro da cerveja. Apenas a degradação e sujeira. Bem, se você for catador de latinha...

*Marcelo Mungioli é advogado e jornalista, foi criador e editor dos jornais “Ubatuba em Revista” e “Correio Caiçara”, além de produzir e apresentar a revista eletrônica semanal “TV Ubatuba”, durante os anos de 1994 e 1995.

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